quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natal sem surpresa

Há dois anos comprei um caderno fininho pra fazer com ele um "caródromo" da família todo janeiro. Daqui a uns dias, lá vamos nós pra terceira página do caderninho, que vai receber então as nossas cinco 3x4 de 2015.
Fino. O caderninho é desses fininhos. Lembro que quase não comprei pensando que as folhas não iriam dar para o que queria, que é ir registrando os rostos e os rostinhos do nosso quinteto desde o começo (2012) até enquanto os cinco ainda estiverem juntos por aqui neste mundo (20??). Contei as folhas: 71.
Parecia que estava errado, caber todo o meu resto de vida naquelas poucas páginas. Mas a matemática não engana (e, no caso, desengana). Considerando a minha idade e a do Patrick, até as previsões mais otimistas da gente, do tipo Oscar Niemeyer e a dona Canô, estariam necessariamente contempladas no breve caderninho.
Comprei. De vez em quando, dou de cara com o caderninho na estante. Pra minha surpresa, ele vem me servindo pra coisa muito mais importante que álbum. Tipo colete ortopédico, passo por ele e estico as costas, corrijo a postura, respiro mais devagar, me enlevo.
Explico.
É que a mirradez do caderno, que é essa da própria vida, me enche, sim, de melancolia. Delgadinha, a vida é uma velocista de primeira e parece, contrariando o ditado, acabar, sim, sempre numa véspera (não conheço gente que não tenha morrido com uma meia dúzia de sonhos ainda no bolso e alguma sede resistente de vida).
Mas não é só melancolia que me bate ao enxergar o caderninho. Som e fúria também - e não deve ser por acaso que essa expressão shakesperiana tem me vindo tanto à cabeça ultimamente. Levado o susto das poucas mas suficientes folhas, agora me gela o coração aquele vazio todo. Mais especificamente, o quanto desse vazio me cabe, euzinha, resolver como preencher, digo, o quanto posso e devo realmente influenciar nesse recheio a ser colocado. Inevitavelmente a minha foto de 2047, daqui a reles 32 páginas, vai me exibir "gasta", com rugas, cabelos brancos e todo o visual de quem, fisicamente, declina. Isso é absolutamente incontornável.
Mas será que não posso escolher, em porção significativa, no quê vou ter me gastado? Com o quê vou talhar essas rugas, que ares que vão descolorir o cabelo?
Posso, e não é pouco. Posso escolher ter rugas em 2047 em um rosto que sorriu muito de um corpo que amou bem. Posso escolher enfrentar os "morros acima com vento contra" caminhando firme, torneando pernas e galgando coragens. Posso escolher um monte de coisas e é aí que entra o Natal.
Natal, pra mim, é tipo esse caderninho: eu passo por ele, ele passa por mim, sai ano, entra ano, e eu sinto as costas imediatamente se esticarem, a postura ficar mais leve, a respiração mais quente, meus 1,70m mais amorosos.
Se tudo já se disse sobre o Natal, algo meio diferente, mas profundamente verdadeiro para mim, me ocorre: o Natal como medida. Medida da qualidade do que eu venho colocando nas minhas finas folhas de vidas.
Se essas costas, ao se esticarem, se flagram curvadas demais; se o peso, ao ir momentamente embora, alivia uma carga que, bem aí, se descobre enorme; se a respiração ao esquentar mostra o quão fria e entrecortada andou; se o amor demora para dar o "load" em você tão hostil encontra o território... O rumo tem que mudar, o caderninho tem que começar a ser preenchido com mais capricho, meu caro.
Agora, se o Natal te encontra e pouca coisa que ele inspira por aí pra você é novidade (vontade de ver os outros, vontade de declarar amores, vontade de transbordar), ou seja, se pra você, neste sentido, Natal é quase que brancas nuvens, porque, distraidamente, parece com qualquer outro dia, meu amigo, eu te digo, seu caderninho continua tudo (besta, breve e mirrado), mas de pequeno e estreito não terá nada. Será, ao final, um pequeno caderno grande.
E é tudo que dá para fazer. Limitado, sim, mas bastante e capaz de preencher, com fúria, som e cores, uma vida inteirinha.
É isso que eu desejo: nas linhas que nos sobram, caderninhos e álbuns e rostos e alturas bem preenchidos.
E, desse jeito, Natais que não nos surpreendem.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Deixar por menos


A expressão "deixar por menos" nem existe direito assim no afirmativo; muito mais comum é a negativa "não vou/vai/vamos deixar por menos". É que ninguém deixa por menos, a não ser mané.
Quando algo te acontece e você se vê cheio de direitos e possibilidades de exigências, o certo é correr atrás de justiça, acertando as contas com tudo e todos. Na nossa épica era dos direitos, é o que se prega a torto e a direito e o que se ensina às crianças. Não sem razão. A opressão e submissão que sempre tanto correram solto por aí nas arenas individuais e coletivas da vida, essa falta de fala e de ouvidos tão persistente em tanto lugar, não poderia mesmo ter dado em outra coisa - e poder cobrar, reivindicar, exigir, seja numa passeata na Esplanada, seja numa DR com a mãe, seja no Procon ou dando um basta numa amizade, é um fruto bom.
Mas fico cá pensando comigo que esse ainda é um estágio intermediário. Que lá nas alturas da aventura humana o círculo se fecha, uma ponta se toca na outra, e quem deixa por menos não é mais o loser, mas, muito pelo contrário, aquele que se ilumina e ilumina. A virtude, virtude da pesada, aqui, não me parece estar no meio.
Deixar por menos não por se encolher, mas por ter se expandido tanto que se passou a prescindir do terreno do outro. Não por covardia; não por preguiça, não por submissão, mas pelo ápice da valentia que muitas vezes significa simplesmente encostar as armas. Deixar por menos, porque estar certo não te interessa mais tanto, ganhar não te interessa mais nada. No seu radar manda sinais apenas uma paz, grande e esquisita paz, porque sem anúncios e sem voz mesmo - e isso não terá nada a ver com o medo, meu dileto Rappa.
Deixar por menos é um quintal ensolarado. Solitário, sim, um pouco, talvez menos animado, mas de uma alegria tão pura que ofusca. Ando espiando ultimamente esse quintal. Vez ou outra boto meus pés nele, começo a ensaiar uma brincadeira qualquer, mas tem sido rápido, tem sempre alguma fome me chamando pra almoçar.
Deixar por menos é mimo do amor. Esse amor Coríntios, bíblico, que sempre soou pra mim tão flagelado, mas que foi a quimera que me sobrou de uma década de franciscana. E, muito loucamente, por um caminho bem inverso, é o que vem me sobrando depois de uma década de análise na batida da desconstrução dos certos e dos errados - os direitos -, dos bons e dos maus - isto é, os credores e os devedores dos pretensos direitos.
Ousado, ousadíssimo, dizer coisa assim, ainda mais trabalhando com justiça (ou com a tentativa de aproximação da). Mas pode ser também que exatamente por estar neste ringue o paradigma venha ruindo pra mim. Pra continuar acreditando nele, só em dias em que acordo muito prática e ruim da vista. Porque dar a cada um o que é seu é lindo, mas só até ali, até a borda, a exata borda do que pode ser mesmo gigante em alguém: parar de fazer contas, deixar o troco pro outro. E ir brincar.
Difícil de entender, impossível de concordar? Deixe-me por menos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A menina de passos curtos

Os passos dela eram curtos, muito curtos. Talvez, a distância entre um e outro desse a impressão de que ela andava de forma acelerada e que fosse, quiça, apressada. Mas se alguém a ouvisse respirar sentiria o reverso. O movimento de seus pulmões costumava dançar ao ritmo de uma bossa nova única, com toques tão mais largos quanto mais curtos fossem seus passos. Só que para ouvir a melodia era preciso encostar os ouvidos no peito dela. Era necessário também um diploma de jardineiro. Não qualquer jardineiro. Só valia o especialista em lavanda. E por que lavanda? É que só o cheiro de lavanda tinha a propriedade de decantar a maior intenção imediatista do certeiro olhar de mergulho. E, uma vez em estado de imersão, era possível entrar no coração dela e ouvir o quanto seus curtos passos e longos respiros e também suspiros sabiam amar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Agosto pantaneiro: primeiro ato


Olho para cima e os raios de sol entram por dois minúsculos buracos de uma pequena folha verde que cresce num galho de uma árvore de tronco menos torto do que os meus olhos estão acostumados a observar. Aqueles dois pequenos orifícios me intrigam. Fico a supor como aconteceram. Imagino algumas causas: formigas, envelhecimento, lagartas, peste local. Não me ocorrem mais hipóteses e sem conhecimento científico de biologia botânica é impossível esquadrinhar a razão daquela folha trazer dois redondos buraquinhos. 
Na minha frente caminha um biólogo que pode saciar minha curiosidade. Eu permaneço, contudo, inerte. Nenhum som sai de dentro da minha boca. Uma pergunta acabaria numa resposta crua, que me despertaria da beleza que é estar atenta à luz que escorre pelas duas discretas aberturas de uma simples folha verde. É preciso estar alerta. É que há horas em que a palavra mata o desejo.

Ofereço, então, minha rara lassidão àquele momento. Afundo minhas botas na terra úmida e coberta de folhas e galhos recém chegados ao chão. Seria bom se eu pudesse atolar. Mas quem atola precisa estender a mão, pedir ajuda, dizer. É a tormenta da palavra sempre à espreita.

Ali, entretanto, o solo é raso. O impulso dos meus pés só consegue chacoalhar a pequena poça de lama e outros materiais orgânicos, sem qualquer possibilidade de empacar meus passos. Assim, sigo. Deixo para trás a cena dos dois delicados feixes de luz atravessando uma folha sem importância. Apenas a guardo em algum canto da minha memória. Naquele lugar, graças ao silêncio, o instante foi meu e de mais ninguém.

 

     

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Like a virgin


Quem convive com criança tem a dizer: o mundo roça na pele virgem delas o tempo todo. É bonito de ver. Vidram admiradas pelas menores coisas (menores coisas? dois fiapinhos de folhas coloridas compassadamente se tocando e flutuando no ar podem ser mesmo considerados só um borboleta voando?); se desesperam também por nada (os foguetes de ano-novo que o digam). A experiência ainda não lhes antecipou a segurança, assim como também não lhes cansou o olhar, esse que de tanto ver pára de enxergar.

Foi sobre esse cansaço no olhar que o promotor que entrou na minha sala na semana passada me fez pensar. É um homem enorme com voz de locutor de rádio. Soltou para mim um cumprimento formal e firme e eu, meio traumatizada com as mordidas que ando tomando por ali, já fiquei desanimada. Que nada. Deu dois segundos e ele me confessou baixinho: "é a quarta audiência da minha vida; estou com a barriga gelada." E soltou uma gargalhada! Ai, doutor, que todos parassem na quarta audiência da vida. Porque foi por essa "rachadura" - melhor, por essa não "fechadura" - que passou a luz (como é dito em um filme que está em cartaz) da nossa tarde levíssima, impressionantemente diferente das outras que venho tendo para minha constatação triste.

Ele estava entregue. Sem experiência a entupir os poros. Comoveu-se com histórias. Perguntou coisas muito além da "prova" que tinha por função produzir. Interessou-se de verdade pelas pessoas. Deixou escapar até um "deus te abençoe" ao se despedir de uma vítima, traindo deliciosamente nosso estado laico. Falou gracinhas bobas para as partes - e eu só tinha a rir junto, feliz da vida pelos protocolos quebrados, pelo esbanjamento de vida que estava rolando ali. De quebra, trabalhou muito bem, porque nada disso é antagônico à competência e tecnicidade, como uma visão binária burra do mundo poderia crer.

Mas a experiência vem. Essa promotor, logo, logo, vai estar na sua quadrigésima tarde de audiências e, não tarda, na quatricentésima. Os namoros fazem 14 anos (como o meu, hoje). As crianças vão crescer e borboletas podem ser que virem só borboletas; os fogos de ano-novo, muitas vezes, só um barulho pentelho.

A virgindade do olhar incontornavelmente se perde.

Mas talvez não seja tão inexorável assim que o cansaço, esse cansaço mau, se instale. Talvez dê pra fazer alguma coisa. Talvez a gente possa cuidar do olhar e dar um olé no lado água sanitária - esse que pasteuriza todas as cores - da experiência.

Como? Sei lá, cada um tem o dever de casa de achar o seu caminho. Mas palpito que vai passar por cultivar, ao lado das certezas que se vai ganhando, algumas boas não certezas, uma coleção de não saberes, de não respostas, de "sei lá, vamos ver, pode ser". Um peito aberto, um abrir-se - o que parece simples, mas exige uma coragem danada. Os foguetes de ano-novo já assustaram demais essas crianças. A gente anseia muito por logo saber que são só foguetes. E as asas da borboleta? Pra quem quer ser tão produtivo e competitivo o tempo todo, não sobra muito tempo mesmo para admirá-las; melhor saber, o mais cedo possível também, que é só uma borboleta.

Não saber é angustiante. Mas saber demais é a morte. Aliás, se não é a própria morte, certamente é a verdadeira velhice. Que cada vez mais vejo não ter nada a ver com o passar dos anos. Nada mais velho que alguém que sabe tudo, que prevê todos os finais, que antecipa todas as possibilidades nos seus cálculos que não pára de fazer da vida. Esse alguém muitas vezes tem 36 anos de idade. Ou 18.

Por outro lado, nada mais jovem que alguém que ainda se atira, não importa a idade, porque não sabe e não se importa tanto em não saber. Como meu pai que, aos 65, se mudou para Copacabana, adotou um boné e uma mochila como visual, e resolveu fazer um doutorado. Porque tinha um monte de coisas que achou que ainda não sabia, mesmo depois de 35 anos de profissão. Na verdade, tinha levado uma lapada da vida e, bom capoeirista que já foi, caiu sem quebrar e já se levantou no contragolpe. Ou a desembargadora carioca de 63 anos com a qual passei o dia inteiro sexta em uma reunião em outra cidade. Ela voltaria na mesma noite para o Rio, mas a reunião atrasou e estava boa demais para terminar. E ela se deixou arrastar por isso - não podia saber antes que seria tão excitante estar ali. Xereta, estiquei o olho para ver. Quando viu que ia ficar, ela sacou o celular, agilmente abriu o whatsapp e escreveu para marido (há 42 anos, como depois me contou): "amor, vou passar a noite fora". Achando engraçado, fiquei imaginando a reação que viria do outro lado. Chegou um: "jura? incrível como até hoje você me surpreende". E vários emojis sorrindo, terminando nuns coraçãozinhos. Pensando no perrengue dela de não ter nem uma troca de roupa, antes de a gente se juntar ao grupo para jantar, perguntei: "você não quer passar no shopping? comprar, sei lá, uma calcinha? eu vou com você". Ela - linda, loura e muito da teen - me respondeu: "calcinha? não, querida. não vamos perder o jantar. eu me viro." Então tá, calou a velhinha aqui.

sábado, 26 de julho de 2014

Série de contos curtíssimos. A fuga.


Havia vincos no rosto daquele homem que anunciavam suas partidas. As horas, os minutos e os segundos escorriam nas rusgas de seu tímido semblante, marcado por metáforas áridas e fugas inebriantes. Ao escapar, seu movimento era selvagem como o de um guepardo faminto. Nesses momentos não lhe ocorria qualquer ínfimo pedaço de compaixão. Atropelava tudo e todos pelo feroz desejo de desaparecer em ondas de poucos segundos de prazer. O prazer de não precisar voltar. O prazer de se comprazer com a eletricidade de seu próprio corpo. O prazer de não ser para mais ninguém.   

quarta-feira, 9 de julho de 2014

essa goleada teve nome: o nosso jurássico descaso com o psicológico

Pra mim, o que o jogo absurdo de ontem mais escancarou foi o quanto ainda não damos o devido valor para o que, pra mim (e a repetição é de propósito), é a verdadeira espinha dorsal de todo mundo: o emocional e suas implicações psicológicas.
Não é novidade. Se a gente olhar para a maioria dos pais e mães, a maioria das escolas, a maioria dos cursos de formação das mais diversas carreiras etc. e perguntar o quanto realmente se investe na formação/desenvolvimento/aprimoramento emocional dos indivíduos, a resposta honesta? Pouco, muito pouco.
Mesmo em relação às pessoas com mais grana, mais informação, mais acesso às coisas, o mais provável de se encontrar nos parquinhos das superquadras de Brasília são crianças impecáveis, com brinquedos impecáveis, acompanhadas de babás impecáveis, indo a médicos impecáveis e, cena plástica montada, um foco bem pálido na subjetividade em desenvolvimento dessas crianças - especialmente quando, para isso, o plástico tem que ceder, o que vai desde se permitir que a criança se suje mais até a mãe ou pai fazerem uma opção por menos trabalho (e menos dinheiro para os cenários, consequentemente).
Nas escolas, a mesma coisa. Se o preço para menos conteúdo - e uma vida com mais espaço para o criativo, o lúdico, o tempo ocioso - é menos competitividade, esqueça, a gente prefere que passem no vestibular e depois damos um jeito de pagar a conta do analista ou, mais comum hoje, do psiquiatra.
Carreiras? Eu tenho uma que diz diretamente com o equilíbrio emocional da pessoa. Na instituição hoje existe um aparato enorme para o curso de formação de ingresso e para cursos de atualização. Quase toda semana rola alguma coisa. Em 16 anos de casa, sabe quando vi alguma proposta que não tivesse a ver com leis e códigos etc., mas com as nossas emoções, reações, camadas de sentimentos e posições subjetivas que estão por baixo de toda atuação profissional? Praticamente nada. E isso que ultrapassou o nada simplesmente não teve a menor adesão por parte dos destinatários.
Psicologia, mesmo em pleno século XXI, ainda é coisa pra maluco. Os "bons" dão um jeito nos seus problemas sozinhos.
Fiquei muito cabreira quando vi os jogadores da seleção chorando antes dos pênaltis contra o Chile. Nada a ver com algum preconceito contra choro, muito menos choro de homem, mas aquele choro, naquele momento, deu notícias, pra mim (idem), sim, de a quantas andava o equilíbrio psicológico deles. Me chocou ver que a providência da equipe técnica foi pedir uma visita da psicóloga no dia seguinte para ter uma conversa com eles. Visita? Não existe então um psicólogo acompanhando a equipe direto? Massagistas devem ser uma dúzia. Ortopedistas, osteopatas, fisioterapeutas, cardiologistas, nutricionistas, mais algumas pencas. E não tem psicólogo? Uma conversa vai resolver alguma coisa ou esse era um trabalho que tinha que vir sendo feito há tanto tempo quanto qualquer outro treino tático, técnico etc. da seleção?
Me fazendo essas perguntas ontem, encontrei a minha resposta pro nosso vexame. Não é explicar o inexplicável, não, Júlio César; na minha opinião, a explicação tá bem na cara. Porque o melhor futebol da Alemanha pode explicar a derrota; mas o absurdo do que aconteceu só a fissuras internas dos jogadores explicam.
No grosso, psicologia, subjetividade, emoção ainda não são valores realmente centrais para as pessoas, para as instituições, para as seleções. O resultado? 7 x 1 para a infelicidade, em várias e várias versões possíveis dessa goleada. No bolão da vida, eu botaria todo meu dinheiro nisso.
Isso tudo me lembra o que uma vez um padre me disse quanto à coisa que mais o impressionava em décadas de confessionário: perceber o quanto as pessoas eram mais infelizes do que se imagina.
Hoje quem amanheceu padecendo de uma esquisitíssima infelicidade, que nem o mais pessimista dos seres poderia supor (alguém na galáxia ganhou algum bolão?), foi o Brasil.
Que a gente consiga fazer alguma coisa emocionalmente útil com isso.

terça-feira, 24 de junho de 2014

O voo da decisão


 

Era um menino imerso numa estranha decisão.

Estava tão triste que não mais sorria não.

Foi quando apareceu uma palavra que lhe disse: vou tirá-lo de dentro dessa confusão.

Rápida e ágil, embalou a decisão

e a deu para dois pássaros que voavam sem pretensa direção.

O menino, aliviado, fez no ar um desenho de seu, agora, livre coração.

sábado, 24 de maio de 2014

Melancolia


Foi uma época estranha. Foi um tempo de objetos de ruídos profundos. Foi num lugar desenhado num mapa.   

Os olhos dela pareciam caçar aviões em vôo. Ela gostava de se deter nas aterrissagens. O ensurdecedor barulho daquele momento transformava-se numa cena quase silenciosa: o roçar de seus pés na grama para experimentar a umidade da terra entrar por entre as crescentes rachaduras de seus calcanhares. Era o único lugar onde sentia que nada caia. De suas pernas nasciam raízes profundas que a deixavam como que plantada. Mas aviões caíam, como todo ser humano, desde bem pequeno. Ao pensar nisso, rezava imaginando uma fé muito particular, a fé dos que acreditam em aviões que nunca caem. E ao tomar fôlego, entre uma oração e outra, lembrava-se que a maior parte do tempo fora cética.

Interessavam-lhe muitíssimo insetos gordos e o modo lento como se moviam no asfalto quente. O trajeto que faziam imediatamente a remetia  aos mapas que gostava de desenhar em papel manteiga quando criança. A sensação que lhe vinha ao corpo era o escorrer dos dedos da mão direita sobre o pó do lápis de cor. Havia um vai e vem que aos poucos dava vida ao mapa, que emergia com montanhas, planícies e rios. A geografia do cotidiano era em tudo semelhante àqueles traçados: uma imensidão delimitada por desgastes, erosões e acumulações, que costumavam esquadrinhar caminhos. Comum que alguns dessem em encontros. Outros não tinham destino que não o fim. Era quando tudo se dissolvia. Será por isso que cenas de catástrofes lhe invadiam os sentidos com frequencia? Que mundo era aquele, que não mais em pangéia, clamava por mais e mais fissuras. Uma onda de desamparo irrompia e lhe ardia a pele. O seu andar distraído vinha em socorro. Aparecia alegórico e a levava para dentro do mapa, aquele onde desde pequena aprendeu a viajar. Foi, assim, que ela desapareceu.  

quinta-feira, 8 de maio de 2014

De mãe em mãe (ou “A doçura do futuro”) - escrito em out/2012


                                 
Clarice me telefona. Entre uma paciente e outra, retorno a ligação:

- Oi filha, que saudade!

- Oi mãe.

- Ih, Clarice, sua voz não tá boa. O que aconteceu?

- Nada não, mãe...

- Não vai me contar?

- Quando chegar aí eu te conto.

- Tudo bem, mas eu vou ficar curiosa, faltam quinze dias ainda pra você voltar...

- Pois é, mãe, mas eu tô com vontade de voltar antes, já nesse domingo...

- Então venha!

- Quero ir, mas aconteceu uma coisa meio chata... Eu deixei pra comprar a passagem de avião na última hora e acabei gastando o dinheiro que vocês tinham me dado todo, tô sem dinheiro pra passagem....

- Não acredito, Clarice! Gastou tudo?? 

- Praticamente...

- Que pena, Clarice, vai ter que voltar de ônibus então...

- De ônibus, mãe? Aqui de Alagoas?

- É, de ônibus. Ou carona. Ou a pé. Sei lá.

- Nossa, mãe, você vai ter coragem de me fazer ir de ônibus?

- Não, filha, quem teve coragem foi você. Se gastou o dinheiro da passagem de avião, como esperava voltar pra casa?

- Você vai pelo menos me buscar na... na... rodoviária?? Eu queria te ver antes de ver o Paulo...[namorado da Clarice desde sempre]

- Claro, Clarice. (Eu te buscaria até no quinto dos infernos, mas essa parte aí deixo pra você descobrir quando virar mãe...)

- Tá bom, mãe. [chateadíssima]. Vou ver se existe esse ônibus aí e depois te ligo.

- Beijo, filha.

- [...].

 

Meio pesada com a situação, começo a divagar: “Como é difícil deixar os filhos viverem as conseqüências do que fazem, sem aparar muito, sem proteger...”. E bem aí a imagem dos olhos do meu último bebê me atropela. Grandes. Azulados. Profundos. Uns pocinhos de água azul morna. A toda hora buscavam se fixar nos meus, como se me perguntassem “e aí, mamãe, é bom mesmo viver?” Adorei aqueles olhos como poucas coisas na minha vida.  

 

Foi uma época complicadinha pra gente. Quer dizer, com a distância de hoje, penso nesse tempo muito mais com ternura e saudade do que qualquer outra coisa, mas, se escarafuncho melhor a memória e sou honesta comigo, não tem como não me lembrar do quanto nos exaurimos quando a Clarice chegou. A rotina de cuidar deles - todos e tantos - esfolava a gente. O Santiago ainda muito pequeno, a Manu sempre com as suas - era complexo acomodar tantas demandas e não asfixiar demais as minhas, comumente gordas e gulosas. Eu não tinha tempo pra mais nada. Às vezes dar um simples telefonema pra alguém exigia um planejamento de dias. Uma loucura [agora com vontade rir]!

 

Claro que também era muito bom. E não precisou se passar vinte anos para eu me dar conta disso. Eu estava sendo feliz e sabia. Não tinha dia em que não me deslumbrava com aquelas crianças lindas e tesas, tudo ali na barra da minha saia, me sacudindo e requisitando o tempo inteiro, mas sobretudo me dando a chance de uma experiência de amor sem igual.

 

De qualquer forma, mesmo no meio desse maremoto todo, consegui em algum lugar certa calma para as pausas que os olhos de Clarice me pediam. E olhava de volta loooongo pra ela. Tanto que os tenho decorados até hoje (os olhos da minha Clarice).

 

Clarice se apresentou ao mundo bonita, mansa e curiosa desde o dia em que nasceu. Simpática (muito simpática) e discreta também. Um pouco frágil, sempre. Lembro-me bem de quando começou a sorrir lá pelos dois meses. Tentava várias vezes ao dia. Não podia ouvir minha voz que escancarava a boca sem saber coordenar direito os cantos da boca. Ficava toda torta, era engraçadíssimo.

 

Pouco mudou. Vem seguindo por todos esses anos a sua natureza bonita, mansa, curiosa, simpática, discreta e frágil, calibrando, aqui e ali, onde e quando isso que é seu sobra, falta, a enrola ou trai. Nos seus vôos, venho vindo na garupa, tentando não pesar muito... Tentando (sobretudo) não me esquecer de fechar os olhos e aproveitar bem o vento gostoso no rosto, bom e quente, da nossa aventura de mãe e filha. Que incrível é isso de acompanhar a existência de alguém desde o primeiro esboço. Se nada mais houvesse acontecido na minha vida, ser sua mãe, Clarice, já teria sido suficiente. Exato assim.

 

Mari abre a porta do consultório, exclamando da porta:

 

- Ué [há muito já perdeu o “uai” que eu adorava], o que você ainda faz aqui?!

- Eu... eu... E você? Suas sessões não são só à noite hoje?

- É, mas eu vim buscar o Seminário XX pra reler. Peguei um caso complicadíssimo. Aliás precisava conversar sobre ele com você...

- Mari, você se lembra da Clarice bebê? [baixinho]

- [sem ouvir] Biaaa, e que coisa é essa do João ter ido visitar a Manú em Milão de repente, sem avisar nada pra ninguém??

- Pois é, te liguei assim que soube mas não consegui falar com você. Almoçamos juntas? Lá te conto o que sei.

- Vamos!

 

[...]

 

 Já no restaurante:

- O que aconteceu é que a Manú escreveu um email todo jururu dizendo que não está gostando muito da faculdade de moda lá de Milão, achando eles meio sem originalidade, e que a ralação de lavar prato em barzinho à noite está puxada demais. Contou também que os italianos são uns babacas com ela, sempre dando em cima de um jeito nojento, e que ainda não fez nenhuma amizade legal. Eu vi que copiou o João. Pelo o que me contou depois, ele ficou super preocupado com ela e, no dia seguinte, resolveu aparecer em carne e osso lá na Itália.  

- Pois é, mas ele é doido, porque vai faltar a vários dias no estágio que ele tava adorando... Não sei se podia faltar...

- Ah, mas estágio de Paleontologia na Costa do Marfim deve ser algo pra se fazer bem devagar mesmo, Mari [risos]. E hoje em dia com esses aviões supersônicos, ele foi da África à Itália em menos de uma hora, e nem por tanto dinheiro assim. O mundo ficou pequeno demais, Mari... Imagina que naquela nossa viagem pra Europa em 2000 a gente gastou mais de dez horas no avião! Hoje em dia são 50 minutos e olhe lá. E já que ele agora tem um pai milionário, tem verba de sobra pra essas loucurinhas...

- Quem diria, né, Bia, que o Fábio descobriria sozinho a última mina de diamante da América Latina...

- Quem diria! E a gente há vinte anos achando que ele tinha mania de grandeza e sonhava alto demais... E quem diria também que ele seria mesmo o homem da sua vida, hein, Mari, e vocês viveriam tão unidos e bem todos esses anos? Naquele começo de vocês foi tanta dificuldade... 

- Opa, homem da vida não existe, Bia. Como diria a velha Arlete, só se pode dizer “homem da sua vida” em retrospectiva...

- É verdade! E a Arlete, por onde será que anda? Outro dia no encontro do IPB – new generation disseram que estava internada... Fiquei preocupada. Mesmo tendo terminado a análise com ela há tantos anos, acho que a morte dela me abalaria horrores!

- Ah, mas ela já saiu do hospital, pois semana passada a encontrei numa livraria, esqueci de te contar... Tá velhinha, acho que já beirando os 90, mas firme. E com aqueles olhos brilhantes de sempre [desses que se ganha o par ao se encontrar na vida]. Ela não me viu e eu preferi não falar com ela quando, ao bisbilhotar o que estava folheando, vi a capa do livro. Tá sentada?? Você não vai acreditar qual era!

- O nosso!

- Exatamente, ela estava comprando o nosso livro! “A justiça no divã: a desventura no território do excesso”, de Gabriela Jardon e Mariana Távora.

- Jura! Nossa... Viu, até ela tem suas curiosidades não muito lacanianas! Arlete...Quanto ela representou pra nós duas, né? Demos sorte, foi uma grande psicanalista. Segurou nossas ondas na unha. Conduziu lindamente as análises. Sob a batuta dela – acho que não é exagero dizer – a gente reescreveu muita coisa, conquistou uma vida mais autêntica, mais livre, centrada no nosso desejo. Ela verdadeiramente “circuncidou” a gente, Mari, desgrudou, tanto quanto possível, a gente do Outro. Pode ter algo mais importante que isso? Não há. Nem saúde, nem prazer – chego a dizer que nem a própria felicidade -, nada me parece mais vital do que se aprender a viver a partir e em consonância com o que se é.

- Engraçado... Isso me lembra a definição de amor de Saint Exupéry:“Amar é conduzir alguém delicadamente de volta a si mesmo.”

- Isso mesmo! Tá vendo que coisa linda? A psicanálise nunca fala de amor, mas, se você for ver, é amor, sim, pois a boa análise não passa disso, da recondução de alguém a si mesmo. Só não costuma ser tão delicadamente assim [risos]. Sabe, Mari, eu fui feliz como juíza. Fui mesmo. Sentia um tesão danado nessa tentativa cotidiana de aproximação da justiça. A justiça é uma coisa bonita. Mas é algo menor, bem menor, quando se pensa no amor, quando se pensa nesse amor da forma como definida Saint Exupéry, esse que conduz alguém a ele mesmo – e que pra mim é a essência de uma análise. Trabalhar com isso hoje pra mim é o que de melhor podia me acontecer. E eu sei que pra você também. By the way, tô pra te falar isso há tempos... O brilho do olho da Arlete... Esse brilho pousou nos seus olhos, Mari! Eu vi isso acontecendo, e reparei!Muito legal toda essa guinada que a gente conseguiu dar. Muito legal ter passado por tudo isso com você.... Aliás, cadê nosso espumante? Um brinde a tudo isso!   

- [...]

- Mas deixa eu acabar de te contar da Manú e do João... Você sabe o que ela me escreveu ontem? Disse que tudo continuava meio mais ou menos por lá, mas pelo menos nesses dias ela estava tendo a mão do João pra apertar antes de dormir! Você se lembra dela pequenininha, que só dormia apertando na mão de alguém? [com os olhos cheios d’água]. A Dora também era assim, se lembra?

- Lembro... Que bonito isso deles... Será que agora eles engrenam de vez?

- Não sei não... Ela insiste em me dizer que ele é só seu “amigão”. Engraçado que chega a usar as mesmas palavras que eu usava para dizer a ela, quando tinha uns quatro anos e vinha com o papo de que era a namorada do João, que ele por enquanto só era seu amigo... E sabe de uma coisa, Mari? Uma amizade dessas é mais rara do que um amor. Deixa estar.   

- É verdade... E os preparativos pra sua viagem?

- Ah, estamos a toda. Ano que vem a gente zarpa. Pelos menos uns dois anos dando a volta ao mundo, só eu e Patrick. Claro, esperamos encontrar as crianças e quem mais quiser por aí, mas será um tempo de soltar as velas e... ir, sem eira nem beira,  voyerizando o mundo por aí. Fico louca de emoção com um negócio desses, a gente tá super empolgado!

- E os meninos, vão ficar sozinhos mesmo?

- Mais ou menos. Minha mãe tá lá nos fundos da nossa casa na casinha que construímos pra ela. A Carol mora no conjunto de cima hoje em dia, com aquele marido rico que tem, com os gêmeos dela e seu séquito de empregados, uma superestrutura... Eu não podia deixar gente mais atenta pra ficar de olho no San e na Clarice. E depois... Cresceram, né, Mari. A gente tentou colocar no input deles o melhor do que sabíamos e podíamos esses anos todos. Agora é com eles.  

- E o San, cadê ele?

- Enrabichado de novo. Mulherengo demais. Essa coisa de homem canceriano, não escapou. E bonito daquele jeito... Mas, tá lá, fazendo a faculdade dele, cuidando das velhinhas da família [risos]. Acredita que todo santo domingo vai até o Gama visitar a Vera? Não falha uma vez. E, quando chega em casa, vai direto ver minha mãe, com quem tem um xodó desde bebezinho, lembra? Faz o supermercado dela, a leva no médico, faz tudo o que pede. Não precisa nem dizer que é a paixão da vida dela.

- Mari, e a Dorinha? Esses dias ela me ligou pra saber como fazia pra falar com a Clarice lá nessa praia em que ela está, disse que ela não atendia o celular...

- Então, parece que ela falou com a Clarice e combinou tudo, estão indo na segunda pra lá ficar com ela. Vai ela e a Gabi da Thaissa.

- Na segunda?? Ué, a Clarice acabou de me ligar e disse que queria voltar domingo... Bem que ela estava esquisita no telefone... Tem alguma coisa errada acontecendo, Mari... A Gabi vai? Que bom! Outro dia encontrei o Rafa. Fui fazer um happy com um pessoal de umas editoras aí tentando vender o meu peixe e ele estava lá, rodeado de gente, contando piada, as pessoas hipnotizadas por ele... Foi só me ver e gritou “tia Bia!” Me fez tomar um chopp com ele, queria saber do Patrick (sempre gostou do Patrick). Impressionante, desde pequeno é essa explosão de energia e simpatia, né?

- E com um humor muito afiado! Também com os pais que tem! E a Thaissa, onde anda hein?

- Ah, depois que eles se aposentaram, ela não consegue mais segurar o Ricardo aqui. Vivem viajando. Por esses dias estão com o Alécio em Mônaco. O Felipe é o novo embaixador do Brasil lá.

- Ah é, você já tinha me falado. Bom, Bia, preciso ir andando, o meu paciente complicado tem sessão às seis e eu quero me preparar melhor pras bombas que ele vem soltando. Aliás, acabou que nem falamos disso.

- A gente nunca esgota os assuntos, Mari... Vai ver que esse é o segredinho das amizades eternas, ter sempre umas pautas pendentes... (;

- Deve ser! Por falar nisso, ano que vem, pelas minhas contas, a gente faz 40 anos de amizade...

- Ih, Mari, não conta isso pra ninguém não! É tempo demais!!! Outro dia me deram no máximo 50 anos de idade... Fiquei felicíssima! Se souberem que eu tenho amizades de 40 anos e que não começaram propriamente na infância... [às gargalhadas e pensando em ter que avisar a Thaissa urgentemente que já temos mais de 30 anos como amigas e agora, definitivamente, não precisarmos mais mentir... Ou será que agora sim é que precisamos?!]

- Vamos, eu te deixo no consultório.

 

[...]

 

Chegando no consultório, meu coração apertou pensando de novo na Clarice. Resolvo telefonar:

- Clarice?

- Oi mãe.

- Filha, o que há de errado? Tô com o pressentimento que alguma coisa tá acontecendo contigo.

[longa pausa]

- Clarice? Tá me escutando?

- Mãe, eu e o Paulo... Mãe, eu tô grávida.

- [...]

- Mãe?

- [...]

- Mãe, fala comigo, fala alguma coisa. Eu tô em pânico!

- Vou comprar sua passagem de avião agora mesmo. Quero te ver o mais rápido possível, filha.

 

[...]

 

No dia seguinte:

- Sabe o que não me sai da cabeça desde ontem, Clarice, quando você me deu a notícia? Que há vinte anos eu também me senti aterrorizada com a notícia de que estava grávida de você. Essa noite não dormi, tentando não só digerir o que te aconteceu, mas também entender a associação inconsciente que estou fazendo dessas duas notícias de gravidezes inesperadas, a minha e a sua. Além do que há de óbvio em comum, estava me parecendo que tinha mais coisa por trás e eu acho que consegui descobrir.

- Como assim, mãe?

- Quando soube que estava grávida de você, me lembro que foram dois ou três dias só chorando. Claro que por razões diferentes das suas agora. Eu era casada, mais velha, já era mãe, tinha um emprego bom. Mas sofria pelo imprevisto, pelo susto, por ter sido pega tão no contrapé pelo o que não foi planejado, pelo o que não consegui controlar. Me sentia mal me achando uma completa idiota por não ter me precavido, por ter deixado isso acontecer. Chorava pelo San que perderia o meu “colo” tão novinho, pela Manu que levaria outra paulada com mais um bebê na casa, pela trampeira que seria ter três filhos etc.

- E aí?

- Aí que eu acho que o meu medo de então e o seu medo de agora, apesar de terem razões aparentemente diferentes, são, na verdade, o mesmíssimo medo. E também a mesma vaidade.

- [...]

- A vaidade ferida de não ter controlado o que, aparentemente, era possível controlar. E o nosso medo é o medo de o que somos, do jeito que somos e da forma que somos, não dar conta do que veio a ocorrer na nossa vida, no caso, a vinda desses filhos. O medo de não conseguirmos e aí envergarmos e aí quebrarmos, talvez morrer. Medo de morrer - no fundo. Não propriamente o morrer literal, mas também o morrer que é metáfora de se perder a vida como é, como estamos acostumadas.  

- Ai, mãe, esse seu papinho psicanalista às vezes é complicado demais.

- Eu sei. Mas essa sou eu, sempre com “papinhos psicanalistas” [risos]... Aliás, sem querer, acabei adiantando o que mais queria te dizer.

- O quê, mãe? [um pouco impaciente]

-  Contra esse medo só há uma luta possível: “comparecer com o seu ser.”. Essa é uma antiga frase da minha psicanalista que, só eu sei, já me alavancou de muita coisa. E se aplica totalmente aqui. O antídoto para esse medo do novo (mais: do novo que não foi previsto), o medo de não ser o suficiente, não saber o suficiente, não conseguir o suficiente, que vem junto com o medo também da mudança, é - e aí vai outra frase antiga, mas dessa vez daquela escolinha que a Manu fez o jardim de infância – “fazer do seu jeito”. A Manu, quando era pequena, vivia me repetindo isso. Eu dizia “Manu, faz isso direito”. Ela respondia “mamãe, eu vou fazer do meu jeito e também vou conseguir.” Eu ficava sem resposta.

- Então...

- Então, filha, eu virei sua mãe, tive três filhos, os dois últimos com muito pouca diferença de idade, e fui criando vocês “do meu jeito”. Tinha dia que dava, tinha dia que não dava (e aí só me restava esperar o outro dia chegar). Aos poucos fui aprendendo que, ao invés de ficar olhando pro vizinho pra ver se estava fazendo certo ou errado, tinha era que concentrar minha energia em buscar cada vez mais “o meu jeito” de levar a coisa, sem me comparar com ninguém. Claro que um jeito que pode e deve muitas vezes ser melhorado, e muitas vezes a forma de se melhorar é exatamente olhar pros lados e ver como os outros andam fazendo. Mas isso é distinto de se medir a partir do olhar do Outro, me sentindo mal por ser diferente.

- E aí?

- E aí que deu certo. Foi dando, vem dando. Talvez em muitas coisas eu dei uma volta bem maior do que o necessário. Ou não cheguei lá tanto quanto queria ou quanto fosse o ideal. Mas vivemos, um dia depois do outro, tombando, levantando, às vezes rastejando, de vez em quando correndo, dançando. Enchemos uma vida. E mais ou menos bem, como você mesma sabe.

- É... Nossa casa sempre foi uma casa boa de se estar. E não tem de quem eu goste mais na vida do que você, papai, San e Manu. Gostar, não só amar. Amar a gente ama muitas vezes só por que tem a ligação de sangue mesmo. Mas de vocês eu gosto, eu curto, eu quero estar perto, quero ser companheira.

- Escute, minha filha: se você se esforçar agora para descobrir a mãe que existe dentro de você, uma mãe única que não é igual a ninguém, uma mãe cheia de peculiaridades, boas e ruins, e possibilidades e impossibilidades também, o medo vai virar potência e todas estas circunstâncias ruins da sua gravidez vão ser acomodadas, mais tempo, menos tempo.

- Mas, mãe, sabe o que me bate também? Uma dor enorme por tudo o que eu vou perder sendo mãe agora...

- E vai perder mesmo. Não só agora, mas em qualquer idade, perderia. Mas vai ganhar, Clarice. Vai ganhar muito, filha. Eu tenho certeza do que digo e queria que você também tivesse. Mas isso aí você terá que descobrir por si mesma, abrindo esse baú que está prestes a abrir agora, experimentando ao que a vida te convida. Abra. Diga sim, filha. É o que de mais importante tenho pra te dizer.  

- Ai, mãe... [soluçando]

 

Ancorada no meu colo, depois de muito choro, Clarice dispara aqueles olhos para mim mais uma vez. Mesmo crescidos (adornos agora de uma mulher inteira) e no momento inchadíssimos, são os mesmos olhinhos do meu bebê, aqueles que me perguntavam, que me buscavam desde o primeiro dia. Sim, filha, é bom viver. E vai continuar sendo. Do seu jeito.  

sábado, 26 de abril de 2014

Sobre diferenças, murros e pontes.


Com a morte de Gabriel Garcia Marquez apareceu por aí a frase que ele teria dito quando levou um murro de Mario Vargas Llosa: "são as diferenças". 


Las diferencias... Se temos uma coisa em comum é a nossa diferença. Entre nobéis, entre mortais, entre todos. Alguém já disse e eu sempre me lembro: "mesmo entre as pessoas mais íntimas, abismos insondáveis".

A impressão digital dos dedos, o desenho da íris, dizem, são provas dessa radical unicidade de cada ser. Mais ainda, eu acrescentaria, o convívio. Os super convívios, os esparsos, os de só dez minutos: todos desafiados pela diferença. Também magnificados, mas isso vem mais para o final (do texto. De uma vida também? Melhor que não.).


"Narciso acha feio o que não é espelho" foi uma grande sacada de Caetano. O diferente de nós nos parece feio porque incomoda e incomoda porque faz a gente colocar um pezinho (ou ser defenestrado violentamente, tantas vezes) para fora do nosso confortável (ps: também tão perverso) narcisismo.
Um narcisismo que ganha em nós tamanho proporcional à insegurança do EU que ele tenta amarrar. Como inseguranças terríveis dão mais que xuxu na serra, fico só imaginando a quantidade de narcisões bombados e narcisas panicats rodando por aí. Medo!


Pois o diferente nos bota pra pensar sobre as nossas coitadas certezas, feitas, várias delas, de um arame tão fraquinho que ao menor espirro do outro o edifício pode vir abaixo.
Como não se defender ferrenhamente de uma ameaça dessas? Não só com unhas e dentes, mas um punhado de preconceitos também pode ser bem útil - aliás, certeza que todo preconceito deita raízes aí.

Sem falar da maledicência - ah, que essa precisava de um post, um livro, uma enciclopédia, uma biblioteca inteira tamanha é a sua expressão em ser sintoma da trombada com a diferença. Não basta rejeitar o diferente; para se livrar de vez do bicho-papão a estratégia por excelência é pichá-lo para deus e o mundo, e nisso somos mestres.

Conheço gente - você também, sem dúvida - que falam mal da mesma pessoa há anos e pelos mesmíssimos motivos. Sem falar dos que falam mal de quase todo mundo. Fosse só feio, mas acabam sendo também uns chatos.

Fico a pensar nessa insistência - porque essa repetição toda, é claro, está a dizer algo. Do que fala, não do(s) falado(s) - óbvio também. Como é possível ainda não ter desconfiado, nem um pouquinho, da inabalável verdade que sempre está a sair dos seus mais lindos lábios*?

Não vai desconfiar nunca, a não ser que decida encarar o pânico de altura que o abismo insondável do outro provoca na gente. Não desesperar. Não fugir desbaratado. Não se fechar em copas. Não dar um murro. Mas ousar se debruçar um pouquinho sobre esse abismo, depois mais um pouquinho, e talvez mais um pouquinho de novo. Devagar. Com olhos bem abertos. Coração. Com mais curiosidade que qualquer outra coisa. Generosidade também ajuda.  

E então, conta aí o que é que dá para ver desde esse lugar?

Deixa eu imaginar. O abismo continua firme e forte. Ok. Mas, opa, o que é aquela coisa comprida ali que vai até o outro lado? Uma ponte? Uma ponte! A paúra da altura quase que não te deixou ver. Enferrujada, empoeirada, meio cansada de esperar, mas lá está ela pra, ao seu menor comando, te conduzir ao outro lado (da história) e atravessar mão-a-mão contigo as suas inseguranças. As banais, as novas, as de sempre, as estruturais. Não vai ter muito como não as levar na bagagem, sabe, mas põe o pé na ponte que elas já não te brecam mais.

A diferença do outro e no outro que, a princípio, tanto assusta/machuca/enoja guarda essa surpresinha para os corajosos: encarada com vagar, curiosidade, olho e coração abertos e generosos, lança a jornada da gente a planos mais altos. E, desde lá de cima da ponte que se descobre poder haver entre mim e o outro, a vista parece ser incrivelmente mais bonita, rica, completa, e eu diria até divertida.

A quem consegue se aventurar assim no estranho território do outro, a esse sim, eu daria o meu Nobel.

 

*aqui aspas para o ótimo livro de Marçal Aquino que outro dia me caiu nas mãos "Eu receberia a pior notícia dos seus lindos lábios". Pra quem ficou curioso com esse título: irmandadedevenus.blogspot.com.br
 

 

 




quinta-feira, 10 de abril de 2014

O giro



Foi de saia rodada.

Coreografou linguagem com chistes e metáforas

Pra certeza nenhuma reinar.

Mas quando girou

Ouviu que só uma verdade valia.

Parou.

Respirou.

Chorou.

No seu mundo,

Alteridade dançava nos espaços de luz fugidia.  



sábado, 29 de março de 2014

Sala branca


Na sala branca

Só sinais ditos vitais.

Na sala branca

Passos muito iguais.

Na sala branca

Ninguém pousa sequer um olhar.

Na sala branca

Quantos corpos presentes

De laços ausentes

Sem nunca se encontrar.

Sorte da lua

que transforma branco em diamante

Para a sala agora cintilar.

 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Etéreas


Tereza apareceu nesse dia com um vestido vermelho opaco. O corpo precisava estar coberto por cor discreta, mas bem certa, para que a cena fosse do chapéu de aba larga. Era um chapéu que parecia antigo e especialmente moldado para o rosto de Tereza, com ângulos tão bem desenhados quanto os seus olhos cor de azul mar. Essa era a Tereza que Ana viu sair do elevador e entrar no rol de entrada do prédio, com um livro pequeno de papel pardo nas mãos.

Elas se abraçaram com um sorriso. Apreciavam o recato dos gestos mesmo sabendo que o tempo lhes reservava sempre algumas poucas horas de ano para se encontrarem. E fazendo de conta que não havia fim para a tarde que entrava, saíram.

Escolheram, depois de um táxi e uma curta caminhada, um café com mesas mais juntas do que o usual. Elas vinham por pura coincidência de um lugar onde se cultuavam os segredos. Por isso acharam um bocado estranho conversar perto de tantas outras conversas.

Procuraram, assim, uma mesa de canto. Era-lhes difícil entremear. A comida e a bebida chegaram meio que em ondas telepáticas. O que importava era a tessitura das frases, que quando não flanavam, aterrizavam em silêncio. Era isso! Havia entre Ana e Tereza uma prosa em ritmo lento que permitia pausa, distração e encantamento. Não lhes cabia ali um cotidiano. Só o que sentiam lhes dava enredo.

O telefone de Ana tocou. Foram-se Ana e Tereza. Andaram e o sol ainda estava lá, quente e lhes dizendo que os seus esquecidos segredos haviam feito o presente voar.

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O melhor lugar do mundo






Era ali, naquele canto de terra, que eles esbarravam na luz do sol.

Lá o roçar das folhas das árvores costumava fazer cócegas no pé do ouvido.

Era a hora em que se podia ouvir a conversa do vento.

Aproveitavam, então, para se entregar ao nada

E riam da tinta que lambuzavam em seus corpos nus.

O que os distraía: tropeços de pés da dança desencontrada que faziam.

Quem os embalava? Talvez, um samba sem nome. Mas a rima vinha da brisa que soava um lento batucar.
Para eles não havia lugar melhor para brincar.


 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O ano vai me engolir. Sei que vai.

O ano vai me engolir. Eu sei que vai. Daqui pouco ficarei na dúvida se é nove ou dez do mês, quarta ou quinta-feira. 
Esquecerei aniversários. Estarei limpando a bagunça do carnaval e já escondendo o ovo de Páscoa das crianças quase que no mesmo dia. 
Planejarei férias com meses de antecedência e, entre isto e aquilo, o tempo escoará pelos meus dedos como areia fina (e quanto mais eu apertar...). 
O ano vai me engolir. Sei que vai. Já vejo seus dentes; conheço essa mordida. 
Segunda e sexta achatarão o que estiver no meio. A semana começará e terminará em moto-contínuo, e esses redemoinhos me sugarão as energias.
Na semana, irei duas vezes ao supermercado.  Na farmácia, na padaria ou no verdurão quase todos os dias. Farei os meus abdominais. Passarei o filtro solar religiosamente, logo depois do fio dental. Levarei filhos na natação, no médico, na escola. Ligarei o automático e sentirei vária vezes dificuldade em sair da minha anestesia. Comerei balinhas sem saber se lembrei de tirar o papel.
O ano vai me engolir. Sei que vai.
Mas não hoje. Hoje ainda não.  
Hoje ele ainda dorme no berço; é um bebezinho que acabou de nascer. É todo esperança, feito inteirinho de futuro. Velo seu sono de recém-nascido e me deixo enganar. Sua inocência de bebê me sussurra no ouvido doces quimeras. Olho para ele, sinto tanta ternura que não contenho fazer planos. Finalmente aprenderei violão. Ficarei muito de papo para o ar. Começo, sem falta, a meditar. Entrarei para a dança de salão. Farei uma amizade nova (uma não, três). Lerei a pilha de livros da minha cabeceira toda; os livros bons, duas vezes. Não deixarei de ir mais a nenhuma festa. Telefonarei para uma pessoa querida todos os dias, só para saber como ela está. Não saberei o que é cansaço, irritação ou preguiça. Viajarei todos os meses. Nunca mais ficarei dando reload no meu email só para escapar do tédio. Serei uma madrinha mais presente.
Eu e esse nenenzinho vamos varar um tempo novo: eu o embalarei suavemente e ele não fará a grosseria de vir a pesar muito no meu colo.
Irei ao cinema pelo menos uma vez na semana. Aprenderei a respirar mais profundo, namorarei com menos pressa, cairei mais vezes na piscina.
Esse bebezinho de candura sem igual veio para me dar todas essas oportunidades - eu sonho. Sua fragilidade não impede a força com que me ilude: suas promessas parecem, hoje, tão possíveis etão reais que chego a ouvir seus passos a caminho. Estão vindo. 
Mas tropeçarão amanhã. É assim que é.
Terão durado só hoje. Logo depois esse ser feito de tempo já começa a crescer em velocidade assustadora. E tão rápido ganhe corpo, me agarrará com os dentes de que já falei. Suas presas não perdoam. Acho que disso também já falei.  
Esse ano vai me engolir. Sei que vai. Daqui a pouco o meu destino de caça se cumprirá, não terá jeito.
Mas o dia de hoje não terá sido em vão. Algo deste histérico banquete ele mudará inexoravelmente: o ano vai me engolir, sei que vai, mas vai me engolir VIVA.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Banho de mar


Era um corpo quase em anestesia

Mas o pensamento o permitia

Nadar em ondas leves

De espumas suaves

Que lambiam a pele morna

Pouco rígida e nunca morta.

Ali, era o mar que movia

O que não mais se mexia.