quarta-feira, 30 de julho de 2014

Like a virgin


Quem convive com criança tem a dizer: o mundo roça na pele virgem delas o tempo todo. É bonito de ver. Vidram admiradas pelas menores coisas (menores coisas? dois fiapinhos de folhas coloridas compassadamente se tocando e flutuando no ar podem ser mesmo considerados só um borboleta voando?); se desesperam também por nada (os foguetes de ano-novo que o digam). A experiência ainda não lhes antecipou a segurança, assim como também não lhes cansou o olhar, esse que de tanto ver pára de enxergar.

Foi sobre esse cansaço no olhar que o promotor que entrou na minha sala na semana passada me fez pensar. É um homem enorme com voz de locutor de rádio. Soltou para mim um cumprimento formal e firme e eu, meio traumatizada com as mordidas que ando tomando por ali, já fiquei desanimada. Que nada. Deu dois segundos e ele me confessou baixinho: "é a quarta audiência da minha vida; estou com a barriga gelada." E soltou uma gargalhada! Ai, doutor, que todos parassem na quarta audiência da vida. Porque foi por essa "rachadura" - melhor, por essa não "fechadura" - que passou a luz (como é dito em um filme que está em cartaz) da nossa tarde levíssima, impressionantemente diferente das outras que venho tendo para minha constatação triste.

Ele estava entregue. Sem experiência a entupir os poros. Comoveu-se com histórias. Perguntou coisas muito além da "prova" que tinha por função produzir. Interessou-se de verdade pelas pessoas. Deixou escapar até um "deus te abençoe" ao se despedir de uma vítima, traindo deliciosamente nosso estado laico. Falou gracinhas bobas para as partes - e eu só tinha a rir junto, feliz da vida pelos protocolos quebrados, pelo esbanjamento de vida que estava rolando ali. De quebra, trabalhou muito bem, porque nada disso é antagônico à competência e tecnicidade, como uma visão binária burra do mundo poderia crer.

Mas a experiência vem. Essa promotor, logo, logo, vai estar na sua quadrigésima tarde de audiências e, não tarda, na quatricentésima. Os namoros fazem 14 anos (como o meu, hoje). As crianças vão crescer e borboletas podem ser que virem só borboletas; os fogos de ano-novo, muitas vezes, só um barulho pentelho.

A virgindade do olhar incontornavelmente se perde.

Mas talvez não seja tão inexorável assim que o cansaço, esse cansaço mau, se instale. Talvez dê pra fazer alguma coisa. Talvez a gente possa cuidar do olhar e dar um olé no lado água sanitária - esse que pasteuriza todas as cores - da experiência.

Como? Sei lá, cada um tem o dever de casa de achar o seu caminho. Mas palpito que vai passar por cultivar, ao lado das certezas que se vai ganhando, algumas boas não certezas, uma coleção de não saberes, de não respostas, de "sei lá, vamos ver, pode ser". Um peito aberto, um abrir-se - o que parece simples, mas exige uma coragem danada. Os foguetes de ano-novo já assustaram demais essas crianças. A gente anseia muito por logo saber que são só foguetes. E as asas da borboleta? Pra quem quer ser tão produtivo e competitivo o tempo todo, não sobra muito tempo mesmo para admirá-las; melhor saber, o mais cedo possível também, que é só uma borboleta.

Não saber é angustiante. Mas saber demais é a morte. Aliás, se não é a própria morte, certamente é a verdadeira velhice. Que cada vez mais vejo não ter nada a ver com o passar dos anos. Nada mais velho que alguém que sabe tudo, que prevê todos os finais, que antecipa todas as possibilidades nos seus cálculos que não pára de fazer da vida. Esse alguém muitas vezes tem 36 anos de idade. Ou 18.

Por outro lado, nada mais jovem que alguém que ainda se atira, não importa a idade, porque não sabe e não se importa tanto em não saber. Como meu pai que, aos 65, se mudou para Copacabana, adotou um boné e uma mochila como visual, e resolveu fazer um doutorado. Porque tinha um monte de coisas que achou que ainda não sabia, mesmo depois de 35 anos de profissão. Na verdade, tinha levado uma lapada da vida e, bom capoeirista que já foi, caiu sem quebrar e já se levantou no contragolpe. Ou a desembargadora carioca de 63 anos com a qual passei o dia inteiro sexta em uma reunião em outra cidade. Ela voltaria na mesma noite para o Rio, mas a reunião atrasou e estava boa demais para terminar. E ela se deixou arrastar por isso - não podia saber antes que seria tão excitante estar ali. Xereta, estiquei o olho para ver. Quando viu que ia ficar, ela sacou o celular, agilmente abriu o whatsapp e escreveu para marido (há 42 anos, como depois me contou): "amor, vou passar a noite fora". Achando engraçado, fiquei imaginando a reação que viria do outro lado. Chegou um: "jura? incrível como até hoje você me surpreende". E vários emojis sorrindo, terminando nuns coraçãozinhos. Pensando no perrengue dela de não ter nem uma troca de roupa, antes de a gente se juntar ao grupo para jantar, perguntei: "você não quer passar no shopping? comprar, sei lá, uma calcinha? eu vou com você". Ela - linda, loura e muito da teen - me respondeu: "calcinha? não, querida. não vamos perder o jantar. eu me viro." Então tá, calou a velhinha aqui.

sábado, 26 de julho de 2014

Série de contos curtíssimos. A fuga.


Havia vincos no rosto daquele homem que anunciavam suas partidas. As horas, os minutos e os segundos escorriam nas rusgas de seu tímido semblante, marcado por metáforas áridas e fugas inebriantes. Ao escapar, seu movimento era selvagem como o de um guepardo faminto. Nesses momentos não lhe ocorria qualquer ínfimo pedaço de compaixão. Atropelava tudo e todos pelo feroz desejo de desaparecer em ondas de poucos segundos de prazer. O prazer de não precisar voltar. O prazer de se comprazer com a eletricidade de seu próprio corpo. O prazer de não ser para mais ninguém.   

quarta-feira, 9 de julho de 2014

essa goleada teve nome: o nosso jurássico descaso com o psicológico

Pra mim, o que o jogo absurdo de ontem mais escancarou foi o quanto ainda não damos o devido valor para o que, pra mim (e a repetição é de propósito), é a verdadeira espinha dorsal de todo mundo: o emocional e suas implicações psicológicas.
Não é novidade. Se a gente olhar para a maioria dos pais e mães, a maioria das escolas, a maioria dos cursos de formação das mais diversas carreiras etc. e perguntar o quanto realmente se investe na formação/desenvolvimento/aprimoramento emocional dos indivíduos, a resposta honesta? Pouco, muito pouco.
Mesmo em relação às pessoas com mais grana, mais informação, mais acesso às coisas, o mais provável de se encontrar nos parquinhos das superquadras de Brasília são crianças impecáveis, com brinquedos impecáveis, acompanhadas de babás impecáveis, indo a médicos impecáveis e, cena plástica montada, um foco bem pálido na subjetividade em desenvolvimento dessas crianças - especialmente quando, para isso, o plástico tem que ceder, o que vai desde se permitir que a criança se suje mais até a mãe ou pai fazerem uma opção por menos trabalho (e menos dinheiro para os cenários, consequentemente).
Nas escolas, a mesma coisa. Se o preço para menos conteúdo - e uma vida com mais espaço para o criativo, o lúdico, o tempo ocioso - é menos competitividade, esqueça, a gente prefere que passem no vestibular e depois damos um jeito de pagar a conta do analista ou, mais comum hoje, do psiquiatra.
Carreiras? Eu tenho uma que diz diretamente com o equilíbrio emocional da pessoa. Na instituição hoje existe um aparato enorme para o curso de formação de ingresso e para cursos de atualização. Quase toda semana rola alguma coisa. Em 16 anos de casa, sabe quando vi alguma proposta que não tivesse a ver com leis e códigos etc., mas com as nossas emoções, reações, camadas de sentimentos e posições subjetivas que estão por baixo de toda atuação profissional? Praticamente nada. E isso que ultrapassou o nada simplesmente não teve a menor adesão por parte dos destinatários.
Psicologia, mesmo em pleno século XXI, ainda é coisa pra maluco. Os "bons" dão um jeito nos seus problemas sozinhos.
Fiquei muito cabreira quando vi os jogadores da seleção chorando antes dos pênaltis contra o Chile. Nada a ver com algum preconceito contra choro, muito menos choro de homem, mas aquele choro, naquele momento, deu notícias, pra mim (idem), sim, de a quantas andava o equilíbrio psicológico deles. Me chocou ver que a providência da equipe técnica foi pedir uma visita da psicóloga no dia seguinte para ter uma conversa com eles. Visita? Não existe então um psicólogo acompanhando a equipe direto? Massagistas devem ser uma dúzia. Ortopedistas, osteopatas, fisioterapeutas, cardiologistas, nutricionistas, mais algumas pencas. E não tem psicólogo? Uma conversa vai resolver alguma coisa ou esse era um trabalho que tinha que vir sendo feito há tanto tempo quanto qualquer outro treino tático, técnico etc. da seleção?
Me fazendo essas perguntas ontem, encontrei a minha resposta pro nosso vexame. Não é explicar o inexplicável, não, Júlio César; na minha opinião, a explicação tá bem na cara. Porque o melhor futebol da Alemanha pode explicar a derrota; mas o absurdo do que aconteceu só a fissuras internas dos jogadores explicam.
No grosso, psicologia, subjetividade, emoção ainda não são valores realmente centrais para as pessoas, para as instituições, para as seleções. O resultado? 7 x 1 para a infelicidade, em várias e várias versões possíveis dessa goleada. No bolão da vida, eu botaria todo meu dinheiro nisso.
Isso tudo me lembra o que uma vez um padre me disse quanto à coisa que mais o impressionava em décadas de confessionário: perceber o quanto as pessoas eram mais infelizes do que se imagina.
Hoje quem amanheceu padecendo de uma esquisitíssima infelicidade, que nem o mais pessimista dos seres poderia supor (alguém na galáxia ganhou algum bolão?), foi o Brasil.
Que a gente consiga fazer alguma coisa emocionalmente útil com isso.