sexta-feira, 29 de março de 2013

casamento

Se existem duas coisas certas em relação a ter crianças é que, primeiro, elas vão te interromper e, segundo, elas vão te interromper muito e o tempo todo (eu disse duas coisas?). Seu sono, seu almoço, seu telefonema, o caso que você está contando, seus planos pro final de semana. Até quem não tem filho entende - basta já ter tentado conversar com uma mãe com criança pequena por perto: é tanta picotação de assunto que dá até vertigem. Melhor achar engraçado.

Por isso, depois de cinco anos de intensas interrupções, dos quais o último foi uma coisa de doido, me flagrei sentindo um negócio esquisito ao ficar mais tempo a sós com meu marido dia desses: medo.

Estávamos indo para BH para o casamento de um amigo. Ao descer do carro da minha mãe no aeroporto, vendo os rostinhos de choro de nossas crianças encostados no vidro, ao invés do costumeiro "ufa-a-gente-bem-que-merece-esse-descanso!", me peguei sentindo... medo.

E de quê, o medo? Era evidente: medo de perceber que a gente virou algo tão coletivo que não sobrou nada como casal. Medo de termos nos perdido e não saber nem mesmo onde. Interrompidos. Fatalmente  interrompidos.

Não foi um medo assim tão grande. Um medo tranquilo até, se é que isso existe. Mesmo do meio do nó, dava pra enxergar que era algo muito mais relacionado à minha tendência apolíptica com tudo que tem a ver com casamento do que com a nossa realidade.

De todo jeito, era um sentimento novo pra mim e me botou pra pensar.

Mas fui interrompida.

Dessa vez não pelas crianças. Mas por ele, esse moço bonito com quem estou casada há já um monte de anos.

Alheio ao meu turbilhãozinho interno, ele passou a mão na minha cintura e, sem mais nem menos, enquanto colocava a minha bolsa no raio-x, recomeçou uma conversa comigo de algo muito dele, duro, íntimo, difícil de falar. Assim, do nada, passou pelo ponto final, tascou um ponto e vírgula e ignorou qualquer hiato que existisse entre a gente. Só fomos parar de novo a conversa já dentro do táxi em Belo Horizonte.

Vi meu medo encolher de vergonha. Vergonha pelo raso que havia sido. Vergonha por ter se esquecido de algo bem básico que já tinha aprendido. Que a intimidade, as grandes intimidades, são peritas em construir pontes altas, altíssimas; as interrupções, ao menos essas que vêm de fora da gente, não as conseguem alcançar. E por elas o amor costuma atravessar, são e salvo.

Isso me lembrou o poema "casamento" da Adélia Prado, não por acaso lido no nosso casamento. Em um trecho ela fala sobre o "rio profundo" que atravessou a cozinha quando os cotovelos da esposa e do marido se tocaram ao limparem os peixes que ele trouxera da pescaria. Nas palavras sensíveis de Adélia, naquele instante voltaram a ser "noivo e noiva".

Pois ali, com essa conversa de "rio profundo", eu e ele havíamos nos reencontrado mais uma vez; "noiva e noiva" de novo.

Disto me veio uma coisa. O quanto a gente enaltece o "primeiro encontro", o "achar quem" do amor, e nem percebe os incontáveis reencontros depois de que uma história de amor vai ser necessariamente feita (falo em história; ensainhos de amor, ah, esses vão ficar sem reencontros mesmo).

E aí, como não percebemos, acabamos não investindo, não inventando, não aprendendo como fazer, não se colocando numa posição propícia a. Passivos, a maioria costuma ficar só na reza mesmo pra que aquela paixonite do início consiga tudo por si só.

Nada mais anti-casamento.

Não passou muito e já tínhamos chegado no casamento do Otávio e da Mariana. Um desses com start bonito, festa bacana e tal, mas que o que mais me emocionou mesmo foi a sensação que tive de que o casal ali sabe o que está fazendo. Que estão dispostos a responder sim um pro outro mais um milhão de vezes, a se resgatarem sempre que preciso, a protagonizarem outros tantos casamentos, dessa vez sem glamour e sem plateia, no silêncio de uma braço que alcança uma cintura, de uma conversa que só se pode ter com aquela pessoa, de cotovelos que se esbarraram durante o mais trivial do dia e te levam pra outro lugar.

Assim, sem muita interrupção.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Dito


Dito a elas por ela o que não se podia dizer.

Sentido por elas como se eles estivessem a dizer.

Logo ela que parecia nunca falar como eles.

Dizem que ela ali deixou de sentir.

Foi não.

É que aquele dia era dia de não dizer.

E em dia de não dizer acontece de dizer o que não se quer dizer.

Só não dá pra dizer que não há sentido no dizer o que não se quer dizer.
 

domingo, 24 de março de 2013

Tarde que cai. Carinho que vem.


Caía a tarde. Provavelmente voltando do cinema, um casal descia as escadas rolantes. Ela estava no degrau de cima e ele no de baixo. Ela envolveu as costas dele com seus braços e recostou sua cabeça nos ombros dele como se fosse o lugar mais seguro do mundo.  Nos dois já se viam cabelos brancos. Nos dois as rugas marcavam mais de cinquenta anos vividos.

Do outro lado, eu subia as escadas rolantes.  E vendo o casal me perguntava: são os dois casados há quanto tempo? São namorados? São casados e namorados? Têm filhos? Têm netos? Como se conheceram? Não pude saber.  Só pude saber que o tempo não havia levado deles a delicadeza de serem carinhosos um com o outro. Só pude saber que se amavam da forma mais gentil possível.  

quinta-feira, 21 de março de 2013

Foi bom

É natural todo fim nos levar a uma pergunta, uma reflexão, uma investigação, um julgamento, para nós mesmos. Qual a nossa conclusão em relação ao que acabou? Foi bom o fim de filme, o fim de peça, o fim de show. Foi bom o fim de viagem, o fim de férias, o fim de semana. Foi bom o fim de um de amor, de uma amizade, de um caso. Foi bom?
Olhando para meu velho, alquebrado, deitado em uma cama de hospital e com olhos fechados, corroído pela doença, quase no fim, me pergunto, olhando para ele, e pensando por mim: “Foi bom?”. Foi é a resposta natural. Foi bom pai. A maior parte do tempo. Foi o meu herói quando se jogou de terno e gravata para salvar meu irmão que tinha caído por acidente na piscina funda do clube, numa dessas bobagens que meninos de cinco anos costumam fazer. Se jogou sem pensar, sem refletir. Logo ele que nem sabia nadar direito. Disso só soube anos mais tarde. E saiu ensopado, sob os olhares atônitos e curiosos dos presentes, esbravejando por não ter um salva-vidas por ali. Mas eu e meu irmão não precisávamos de salva-vidas, pois tínhamos o nosso, particular, sempre a postos. Foi sim bom pai. E pouco importa que a maior parte do tempo estivesse preocupado demais com coisas de gente grande. Pouco importa que não fizesse os deveres conosco, que não olhasse o boletim que insistíamos em mostrar orgulhosos, que ralhasse conosco por motivos de pouca importância e que de quando em vez nos desse chineladas merecidas e imerecidas. Pouco importa que não sentasse para brincar conosco e se mantivesse, quase sempre, olhando por entre nós e pensando em algo. Provavelmente problemas de adulto e que naquelas horas eram mais importantes do que estar conosco. Insistia em dizer “A vida é um mar de sangue, suor e lágrimas, filho”; “ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Venceu algumas batalhas, perdeu outras tantas, atrapalhou-se pelo caminho. Como os atletas, como os bichos, perto do fim, perdeu mais do que ganhou. Mas não se acostumou com isso: sofria. Foi bom pai. Poderia ter sido melhor pai, como também eu poderia ter sido melhor filho. Como todos nós poderíamos ter sido melhores em tudo e em qualquer coisa. E talvez ainda possamos em algumas delas...
E mantendo a pergunta, olhando para ele, mas mudando o foco, e perguntando por ele: “Foi bom?”. Foi boa a vida que chega quase ao fim? Sei não e arrisco dizer que não. Difícil tentar entender o que se passa no íntimo de outro ser. Eu o enxergava sempre ocupado, olhando para fora de si, mas para dentro de ninguém, trabalhando, trabalhando, trabalhando, descuidando do corpo, da alma e do coração, esperando dias melhores que chegariam, para que, então, começasse a viver. E tantas vezes repetiu: “Em breve, filho, assim que as coisas melhorarem”. E os dias viraram semanas, as semanas viraram meses, os meses viraram anos, e os anos - quem diria - viraram algumas poucas décadas. Suficientes para não fazermos aquela viagem, para não irmos ao estádio ver aquele jogo, para não assistirmos aquele filme, para não ouvirmos aquela música, para não termos aquela conversa. Só há pouco tempo mesmo, com meu pai já bastante combalido, mas ainda sentando, descobri o gosto dele por jogar dominó. Ele ria! Por que não antes, meu Deus? Eu estive ali, eu estava ali, o tempo quase todo! E mesmo depois que parei de perguntar, porque a resposta era sempre a mesma “Em breve...”, eu teria voltado. Teria. Quero acreditar que teria. E também se eu não tivesse voltado, pouco importa, porque você teria sido feliz de qualquer maneira. Me corrijo e digo então que pode ter sido boa a vida pra ele. E me resta, agora, chorar por você e por mim, e amar meus filhos, com quem você nem conviveu, porque moramos em cidades diferentes. E me resta tentar ser um pai melhor do que tenho sido e melhor do que você foi. E me resta te amar para sempre, como um bom pai. Pra mim eu tenho a certeza que foi bom!
(anônimo)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Olhos gentis

 
Sempre que penso em você olhos gentis me vêm à mente.
Tento lembrar algo mais, porém seu olhar é forte, me prende e não escapo para encontrar nada além.
O olhar gentil é raro.
Raro de se ter.
Raro de se notar.
Somente o tem, quem pode ter. É olhar das crianças.
Somente o nota, quem o procura.
 
Thiciane Guanabara

domingo, 17 de março de 2013

Curta I: segundo ato

Com a flor vermelha no cabelo tinha a esperança de tingir de cor o medo que a rondava. Mas havia jeito não porque em dias de chuva a tinta escorria e o medo espalhava. A amiga disse que não era justo. Era que em flor vermelha não cabia angústia não. Só que ali naquele cabelo molhado coube.

Curta II: ilusão de ótica

Foi só um pouco mais que um dia, mas já deu uma dorzinha. Aliviada, no avião, pensou que, a 800km/h, estava a encurtar, e era até acabar, a distância que se colocou entre ela e seu bebê. Quando chegasse a pegaria no colo e assim ficaria até o braço doído dar um jeito no coração aflito. Quem é mesmo que eu disse que pegaria quem no colo? Ilusão de ótica.

Curta I: flor com espinho

Chovia.
Mesmo assim, ela saiu de flor vermelha no cabelo pra ganhar o dia.
De caso com a vida, enxergava a rua colorida. 
Distraída, sorria.
Um pouco antes do almoço, no entanto, atropelou-se: o medo veio na contramão e a acertou em cheio. Foi angústia pra todo lado, a tingir de sangue o chão molhado. 
Despenteada, não entendia. Pessoas ao redor cochichavam e ela ouvia: "aquela flor vermelha ali não a protegia?"

sexta-feira, 15 de março de 2013

O menino que sabia de medos


 

Pilar estava entre mulheres.  Uma delas disse algo que a aturdiu. Foi assim fácil aceitar o convite de um menino lépido que por ali apareceu.  Ele entrelaçou suas pequenas mãos nas dela e juntos foram até um quarto só com colchões, onde num canto dormia uma menina, cujos cabelos de mechas douradas pareciam desenhar o travesseiro. Noutro canto, sobre uma pequena mesa havia um aquário com um único peixe.

O menininho perguntou a Pilar: você quer pegar meu peixe? Sem pestanejar, ela disse que não. Ele virou-se de soslaio, transparecendo estar frustrado. Pilar resolveu, então, narrar suas dificuldades em acarinhar o tal peixinho. E ao notar que os olhos dele estavam ávidos por detalhes enveredou-se pelos caminhos por quais andavam os peixes de sua vida. E ali falou que sua história com peixes começara quando ainda era criança como ele.

 Na memória de Pilar redesenharam-se cenas antigas: um aquário modesto, num banheiro onde raios de sol faziam-no parecer maior do que era; peixes de cores gastas que costumavam pular do aquário e eram encontrados no chão ainda sacudindo; operações de salvamento dos peixes suicidas, sempre feitas, curiosamente, por irmãos mais novos de Pilar, que quase sempre acabavam em  sepultamento.

Pilar sentiu-se à vontade para contar ao menino aqueles minutos vivos de sua infância que a memória conseguira recolher tão bem. Espreguiçou e já sonolenta acudiu-lhe que não convinha esconder do menino que os peixes desde então lhe renderam medo. E dividiu com o garoto um passeio fracassado, que a deixou sozinha no barco, enquanto todos se divertiam mergulhando, por puro pânico dos peixes a tocarem.  Pilar, não tão forte quanto seu nome, não pôde deixar de confessar ao menino que depois de um curso de mergulho, que só chegou à metade, parou de duelar com bichos inofensivos. E tagarelando sobre o assunto, num jeito mais assertivo que o de costume, orgulhou-se de já ter mergulhado em águas transparentes com peixes coloridos, golfinhos e arraias. Sem a honestidade que pedia o arquear profundo do olhar do menino, omitiu que o mergulho acontecera porque seu bondoso namorado a acompanhara.  Aliviada por terminar sua narrativa cortada por meias verdades, Pilar espremeu com força seus pés no chão claro, como se aquele gesto pudesse esconder a angústia que a invadira. O menino fitou profundamente os olhos de Pilar e disparou: você ainda tem muito medo pois não beijou meu peixe. Pilar engoliu seco. O menino percebeu e com enorme doçura ponderou: você pode fazer carinho no meu peixe pelo vidro do aquário.

Pilar, dias antes de encontrar o menino, havia lido que “a angústia é a vertigem da liberdade” (Kierkegaard). O menino a ensinara que os peixes mortos de seus medos vivos podiam se transformar em medos mortos de peixes vivos. Bastava olhar a cena pelo vidro.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Você tem tempo de quê?

Há tempos estou engasgada com um post sobre o tempo - é que não tem dado tempo!
E começo aqui já tropeçando num pensamento meio dolorido que tenho tido ultimamente sobre essa história de tempo: ter tempo ou não ter tempo pra alguma coisa é muito mais uma questão subjetiva do que objetiva. É mais psicológico do que cronológico.
Me dói porque manda pro beleleu uma das mais eficientes desculpas pra tudo: não tenho tempo, não deu tempo, não vai dar tempo. Nesse mundo nosso estupidamente apressado e atarefado quem vai duvidar?
Mas, desculpa desmentida, lá vou eu ter que me haver comigo mesma: o que quero-quero-mesmo, o que penso-que-quero-mas-não-quero, o que quero-mas-não-queria-querer, o que não-quero-mas-acho-que-deveria, o que quero-mas-me-dá-medo-conseguir, o que não-quero-mas-vou-fingindo, o que quero-porque-querem-pra-mim... E por aí vão os quereres todos, tão escamoteados quanto decifráveis na forma como ajeito as democráticas 24 horas dos meus dias.
Não é que não exista, óbvio, o tempo físico, concreto, alheio às paixões e vontades - esse com quem sentamos pra negociar a toda hora. E também não é verdade que somos tão donos do nosso tempo assim a ponto de que o que fazemos dele estar sempre a falar da gente. Claro que não. As tantas imposições da vida, o pão nosso de cada dia, as exigências que vêm de todos os lados, tudo isso nos força a agendas que, na maioria das vezes, saem bem mais lugar-comum do que autorais.
Mas falo das brechas, da forma como colocar limites ou não nas obrigações, das coisas complexas que nem pestanejamos em fazer na mesma hora e do que é tão simples e banal e que, sem saber explicar, protelamos o máximo.
Falo da própria capacidade ou incapacidade de organizar o tempo (pode ler "organize-se em dez lições" quantas vezes quiser, fazer o curso que quiser, chamar a pessoa que quiser pra organizar sua casa e seu armário: se uma certa desorganização interna não se quebrar, a gente não se organiza externamente nunca).
Falo das metas que são cumpridas sem nenhum drama e daquelas de uma vida inteira que, sai ano, entra ano, ainda têm a cara de pau de entrar nas nossas listinhas de ano-novo.
Falo da academia que a gente abandona antes de cair o segundo cheque; falo da pessoa que "adoramos", mas que nunca encontramos meia hora pra estar com ela. Falo da carreira que não pode parar pra você ter o filho que "quer tanto".
Falo do tempo que você voa no trabalho, porque simplesmente não consegue se concentrar. Do almoço longo que você faz com a amiga na mesma semana em que o pedido de exame de sangue venceu pela terceira vez pela sua "absoluta falta de tempo".
Falo do concurso que você "dava tudo" pra passar, mas, quando vê, não consegue abrir mão de estar na night todo final de semana.
Falo da novela em que você gruda todo dia, ao mesmo tempo em que, no intervalo, sofre com a geleira que seu casamento está se tornando por "falta de tempo".
Ou da terapia que você "quer tanto" começar pra ver mais de perto um monte de coisa, mas que, imagina, uma hora inteira por semana pra isso - mesmo que suas unhas nunca passem mais do que isso sem ver o salão. Daquela ligação que você não consegue nunca fazer e daquele email que cria teia de aranha no seu inbox sem responder. Já falei da pilha de livros intocados que se acumulou no criado-mudo?
Enfim, são zilhões os exemplos dessa nossa relação meio cínica e atabalhoada com o tempo e, especialmente, com o contratempo.
Todos flagrantes a mostrar que, mais do que relógios, o que escala mesmo o nosso tempo (e, consequentemente, a sensação que se tem de sua quantidade ou velocidade) é algo muito mais escorregadio e indomesticado: os nossos desejos, desde os mais íntimos até os mais anunciados, os conscientes, os inconscientes (principalmente), os que conhecemos desde criancinha e os que nos causam uma estranheza enorme.
Por exemplo, desde que começamos esse blog já ouvi trocentas vezes a pergunta de como eu tenho tempo pra isso, mesmo com tudo o que tem rolado ultimamente (filhos pequenos, trabalho puxado etc.) Tempo? Não, não tenho tempo. O que tenho é febre (de escrever). E febres não pedem uma hora para nos acometer. Quando a gente vê, pronto, tem algo na cabeça que pede pra ser rabiscado e acaba sendo nas horas mais improváveis (como esse, no meio de um chá de cadeira do médico).
Pra quem sabe rir de si mesmo, chega a ser cômico como as coisas acabam nos saindo a despeito de toda a nossa racionalização e intenção.
Se me arrepio um pouco com essa irremediável falta de controle, mais no fundo vibro: é bom saber dessa nossa rebelida; de ver quem manda em quem. Não adianta, as nossas ordens internas são sempre soberanas, prometam o que prometerem aos bem comportados. E, pra quem tenta se domar custe o que custar, avise-se: quando descarrilhar (porque é certo que vai), segura, porque a força descomunal que se fez para um lado costuma ser diretamente proporcional ao tamanho do tombo que se leva pro outro.
Não é que cure esse lamaçal da aparente falta de tempo, mas dá uma certa paz, ou resignação vá lá, saber que o que falta, na grande maioria das vezes, nao é tempo, mas sim a mais bacana das audácias que é ser exatamente quem se é, querendo assumidamente o que se quer. Ir de corpo e alma atrás dessas charadas é, então, disparado, o que de mais precioso podemos fazer com o nosso tempo - ou melhor, com a "falta" dele.





segunda-feira, 11 de março de 2013

Caminho


Andei reto.

Corri em curvas.

Pisei em falso.

Voltei.

Não havia mais chão.

Afundei?

Não.

Ela sorriu

e ali cantou

que segurando a mão,

eu não afundava não.

 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Justiça "sentimental"



Num sábado de sol, lia antigos artigos de Clarice Lispector na imprensa, quando me deparei com uma narrativa de conteúdo jurídico. Já sabia que Clarice havia estudado Direito, mas confesso que não a imaginava fazendo seus densos voos em temas jurídicos. E me surpreendi com Clarice dizendo que: “(...) Houve um tempo em que a medicina se contentava em segregar o doente, sem curá-lo e sem procurar sanar as causas que produziam a doença. Assim hoje é a criminologia e o instituto da punição.

Surge na sociedade um crime, que é apenas um dos sintomas dum mal que forçosamente deve grassar nessa sociedade. Que fazem? Usam o paliativo da pena, abafam o sintoma... e  considera-se como encerrado um processo. Como então imaginar que o fundamento desse poder que a sociedade tem de punir está na legitimidade, se essa legitimidade só se explicaria por sua utilidade? E onde sua utilidade? Se X comete latrocínio e é encarcerado, A, B, C, D,… etc., ficam impedidos de cometer o mesmo crime? A punição esqueceu-se de encarar a reincidência, no seu sentido lato.

(…) Nota: - Um colega nosso classificou este artigo de “sentimental”. Quero esclarecer que o Direito Penal move com coisas 'humanas', por excelência. Só se pode estudá-lo, pois, humanamente. E se o adjetivo “sentimental” veio a propósito de minha alusão a certas questões extrapenais, digo-lhe ainda que não se pode chegar a conclusões, em qualquer domínio, sem estabelecer as premissas indispensáveis.”

Não tive como não ficar arrepiada da cabeça aos pés, principalmente ao notar que isso foi escrito em agosto de 1941. Explico bem o porquê.

Em abril deste ano completo dez anos de labuta na área criminal e nessa jornada preciso confessar que durante bons anos eu quase perdi as esperanças no Direito Penal. Eu via formalidades demais e sensibilidade de menos. Mas como em todo caminho há um desejo, e em todo desejo há um caminho, no meio da minha estrada jurídica encontrei o meu “ninho”, onde me recasei com o Direito Penal.

Faço uma pausa aqui pra dizer que a frase que brinca com caminho e desejo não é minha, mas de uma psicanalista de cabelos branquinhos e de jeito manso e doce, que chega a dar vontade de ouvi-la falar uma tarde inteira.

Retomando, o meu “ninho” foi a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Ali, o espectro de Justiça, que antes para mim, era o mais formal possível, com processo e imposição de pena, sabendo-se lá se o condenado teve reentrada no sistema de justiça, passou a ter uma possibilidade de pena com sentido verdadeiramente educativo. É que no meu dia a dia vi vários relatórios elaborados em processos criminais, que apontavam para a quebra do ciclo de violência doméstica porque o autor passara por um percurso de responsabilização baseado, principalmente, na assunção de conceitos de gênero e reconstrução dos padrões de comunicação. Porém, no caminho há pedras também. E quando falo em pedras, penso imediatamente no artigo da Clarice Lispector, pois apesar de ter sido escrito nos idos de 1941, até hoje ressoa com atualidade. Buscar sentido na pena; tentar fazer com que ela dialogue com o “sintoma” do criminoso parece conto da carochinha para muitos.

Só que no lá no meu “ninho” tive a sorte de encontrar uma dupla e tanto de sabiás sabidas, que dia após dia me ensinam que a Justiça é lida humana e por assim dizer "sentimental". Então, no dia internacional das mulheres a minha homenagem vai para a duplinha de sabiás, Alessandra Campos Morato e Fabiana Costa Oliveira Barreto, mulheres que fazem a Justiça do Distrito Federal muito mais humana e, como não poderia deixar de ser, muito mais "sentimental"!

terça-feira, 5 de março de 2013

Nas bordas


Estavam os dois na borda da piscina. Ela avançou. Deu um grande mergulho pra buscar a pedrinha que jogou no fundo. Na volta, o rostinho redondo estampava a satisfação de conseguir o que havia treinado horas no dia anterior.

Ele tentou avançar. Foi um pouquinho além da borda. No dia anterior havia treinado percorrer toda a borda da piscina da casa da avó. Dessa vez, tentou ir um pouco além.  Não conseguiu. Chegou a beber água. Ficou triste, imensamente triste ao sentir seu pequeno plano fracassar. Saiu emburrado. Papo só pra bicho do mato.

Ela, quando o viu deixar a água, ensimesmou. Ficou perdida com sua pedrinha na mão. Alguém maior tentou fazê-la compreender que ele ainda não bem sabia nadar. Ela fez questão de dizer que era como ele, que também só lhe cabiam as bordas.  Disseram a ela que não era problema saber mais que ele. Deu de ombros. Foi atrás dele e repetiu:  olha, eu sou como você, também só posso com as bordas.

Como bons bichos do mato se entenderam. Ela conseguiu depois de algum tempo levá-lo de novo para a água. Arrumou-lhe uma pranchinha de isopor para ele ir além da borda. E lá foram eles juntos até a noite cair.

Ele teve sorte dela ser quem é. Ela sabia que o colo que ele precisava era a sincera mentirinha dela. Ela teve sorte de ter vivido desde que veio ao mundo ao lado de quem nunca teve medo de compartilhar a dor do outro.  

domingo, 3 de março de 2013

vida eterna

Eu só a vi umas duas ou três vezes, mas já foi o suficiente para entender porque os olhos do meu marido quase quarentão sempre se acendem, e às vezes aguam, quando fala dela. Tia Nádia, mãe do Fonte, um dos maiores amigos do Patrick desde criança, tinha tudo pra ter desempenhado na infância/adolescência dele uma pontinha bem coadjuvante: a mãe do amigo. Mas o seu coração desmedido acabou por fazer dela uma das maiores referências de amor e generosidade do Patrick (e, de quebra, minha também - recebo, feliz, esse dote de casamento).
Tanto que outro dia peguei na jugular dele. Ao ouvir um estranha resposta sobre ele não poder ir buscar uma das amigas que Manú mais adora na casa dela em Sobradinho ("hoje eu não quero sair do lago norte"), repliquei na hora: "é... imagina se tia Nádia pensasse igual..." O efeito foi pronto: acho que não foram nem cinco minutos até eu ouvir o ronco do motor do carro saindo da garagem, com a Manú quicando de alegria atrás.
Ele conta que era invariavelmente assim. Que tia Nádia era uma dessas pessoas que não fazia contas quando se tratava de acolher alguém, incluir, ajudar. Literalmente, andava o quilômetro extra pelo outro sempre que fosse preciso. Que ela o levava e buscava quantas vezes fossem as combinadas lá no final do lago sul (sem ponte nova) e que, não importava a hora em que a festinha terminasse, era a mãe do Fonte que os buscava na madrugada. No verão, a família tinha uma casa no Rio e lá ia o Patrick passar as férias inteiras debaixo da asa dela. Posso garantir pra tia Nádia que, no arquivo pessoal dele, esses verões pertencem às lembranças mais empolgantes.
Há uns dois anos, o telefone tocou e do outro lado era a notícia da morte dela. A gente já estava esperando, mas deu pra ouvir o peito do Patrick trincando por dentro. Nem pestanejou, tocou imediatamente pro aeroporto: dessa vez o caminho era por conta dele.
Mas quem disse que tia Nádia não continua aqui? Claro que continua. Tanto que outro dia foi buscar a pequena Ana Clara em Sobradinho. Tá aí uma forma de eternidade em que acredito: o amor, a atenção, o carinho que a gente dá pra alguém e que esse alguém vai dar igualzinho pra outro alguém mais adiante e sucessivamente; os exemplos e lembranças nossas que pesarão na hora de alguém decidir, dentre outras coisas, se tira a bunda do sofá ou não.
Escrevo isso e vejo que o post mudou de assunto. Eu queria mesmo era falar dessas mães e pais dos amigos que marcam absurdamente a vida da gente. Adultos fenomenais que, no lugar daquela usual troca de monossílabos mal humorados com os amigos dos filhos, acham disposição pra se relacionar de verdade com eles (crianças embirradas e adolescentes intragáveis, comumente).
Como o sem igual tio Juca, que dentre outros crimes açucarados (todos prescritos, viu, tio?), me apresentou ao whisky às quatro da tarde de uma prosaica terça-feira de dever de casa. E tia Eliane, que também se foi muito cedo, pra quem não bastavam os três filhos, passava a mão em mais um penca de adolescentes e nos levava pras melhores férias do mundo em Rio das Ostras. Ou tia Deusa, com seus imensos olhos de céu, que de vez em quando mandava lanche pra mim na lancheira da Raquel (e que lanche!), só assim, porque tinha se lembrado de mim.
Eles bem que mereciam eu falar devagar de cada um, mas não vai dar tempo. O exemplo de minha mãe, que sempre largou tudo pra me acudir, me atropela: alguém chora.