domingo, 21 de agosto de 2016

Flávia

"Longe, lá de longe, onde toda a beleza do mundo se esconde,
mande para ontem uma voz que se expanda e suspenda esse instante.
Cante para hoje" palavras que vêm de um tempo distante.
Fale agora que muito além do ontem, existe uma ponte de candura bem marcante.
Diga que nela anda uma moça de olhos fulgurantes,
que voa num céu de mil e cem cores.
Cante que quando há medo e fortes, fortes dores,
ela é vista a pular em nuvens de mil e e cem amores.
Fale que carrega um lenço bem rendado
para o caso de lágrimas e também tremores.
Diga que a encontrei no passado de mil e cem horizontes,
onde demos as mãos sob uma árvore de onde pendem quarenta,
sim quarenta flores.

Balanço

A sombra que desenha um vai e vem 
é amiga da menina que balança
num imaginário e descontínuo trem. 
Roçam, roçam, no chão de terra batida, os pés da moça,
que anunciam, nova estação.
Pequeno arrebite e o balanço pede:
"pare não".
Cabelos precisam de desalinhos
para seguir sem sofreguidão.  

quarta-feira, 30 de março de 2016

"Sua avó morre hoje"


Um telefonema da mãe bem cedo a avisou que a avó morreria naquele dia. No dia seguinte no máximo - teria dito o médico.

Sentada na mesa da cozinha, o sol batia de leve na cadeira mais longe da janela, o que ela sabia significar que o céu se abriria dali a pouco daquele jeito escandaloso que só em Brasília.

Correu para vê-la, demorando muito mais que o normal para percorrer os dez quilômetros que a separavam da casa da mãe, onde estavam a avó e sua morte; morte que, quando chegasse (às 10?, meio-dia?, três da tarde?, só na madrugada?), as separaria definitivamente e sem volta, fosse ela mais rápido ou mais devagar.

O quarto era o último do corredor. Estava certa: fazia um lindo dia de sol e o apartamento parecia suspenso, brincalhão, em seus raios. Fora o choro baixo da mãe, ninguém diria que naquele dia e naquela casa alguém perderia a vida.

Mas perdeu.

Só que antes ela abriu a porta e encarou a avó. Carcomida pela vida, pela doença e agora pela morte, nunca a tinha percebido tão miúda. De olhos fechados, alguma antessala já lhe tinha roubado o canal com o mundo havia dias.

Sentou-se junto à cama. Estavam as sós: ela, a avó, seu fiapo de vida e a morte iminente. O que fazer? O que se faz numa hora dessas?

Notou as janelas e cortinas fechadas; a luzinha fraca do abajur a (des)colorir o quarto de cinza-gelo.

Estaria a avó com calor? Estaria com frio? Estaria com dor? Estaria aonde?

Lembrou-se do nascimento da filha. Embora vinda da outra margem, só então havia visto de tão perto alguém cruzando essa mesma estranha passagem, vida-morte, morte-vida. E também tinha tido anúncio e véspera. Uma gravidez inteira já percorrida e a criança não nascia. Todo dia acordava e todo dia lhe alucinava o pensamento de que poderia terminar aquele dia mãe. Nada para ela dava conta daquele enquanto.

Pois terminaria o dia sem avó. E também nada parecia dar conta daquele agora. Se deixasse, a aflição a arrastaria agonizando com avó até o final. Mas a lembrança da gravidez inspirou-lhe outro rumo. Quando não sabia mais o que fazer para aguentar a espera pela bebê,  enfeitava os dias, com cantos, passeios, cheiros e histórias. Esmerava-se nisso: se ela chegasse, quando chegasse, sua filha encontraria o melhor entorno possível.

Teve a ideia então de, por que não?, enfeitar o máximo a morte da avó. Seria calma. Seria amarela. Seria solar. Seria fresca. Até alegre, até feliz, muito mais para agradecida do que contrariada. Havia motivo para isso, embora houvesse também tanto motivo contrário. Escolhas – vive-se delas até morrendo.  

Decidida por isso, abriu as cortinas todas, da casa inteira. O sol invadiu o quarto da avó e estava no ponto, nem quente, nem frio, só carinhoso. O vento deu uma lambida nos cabelinhos ralos da avó e arrepiou as pernas ainda inacreditavelmente bonitas para a idade. Simplesmente não dava para acreditar que aquelas pernas voltariam a ser terra em tão pouco tempo. Simplesmente não dava para acreditar que sua avó, ainda ali, não estaria mais, em alguns horas, alguns minutos, talvez só o tempo de terminar o pensamento. Simplesmente não dava para acreditar em nada do que estava acontecendo. A morte é mesmo um absurdo.

Queria colocar música, mas não se lembrava de que músicas a avó gostava, sentindo um golpe duro no peito bem aí ao imaginar que talvez não tivesse passado o tempo necessário com avó para descobrir-lhe as músicas. Aliás, talvez não tivessem feito um monte de coisas uma com a outra. E agora já não dava tempo para mais nada. Não importava: o que tinham sido e talvez principalmente o que não tinham sido também iria para debaixo do chão a seguir. Não. Errada. O que foram existiria enquanto ela existisse. Ok, o que não foram faria o favor de jogar lá no fundo do mundo mesmo.

E agora? Música de igreja, ótima pedida. Achou no celular e colocou em boa altura. Colocou todos os santos no criado-mudo. Avisou-lhes que estavam de plantão.

“Vamos cantar, vó. Vamos falar de alguma besteira. Sim, besteira, vó, porque só as besteiras estão à altura dos momentos realmente grandes como esse. Você não conseguindo, deixa comigo: eu canto e falo por você. E te abraço e te beijo e choro um pouco na sua bochecha (vai desculpando trair nosso plano de sua morte alegre).”

Enxotou, o dia inteiro, todo o assombro exagerado e o baixo astral que tocavam a campanhia. Podiam dizer adeus à avó, sim, mas que fossem leves, por favor. Rezou o terço em voz alta. Três vezes, como a avó tinha lhe ensinado quando se quer rezar o rosário. Passou na avó seu creme e seu perfume preferidos, da cabeça aos pés. Pegou os álbuns da casa, olhou as fotos de uma vida, mostrou a ela e a suas pálpebras cerradas. Comentou tudo de que se lembrou. Riu, enquanto a vó ainda se ia. Chorou, enquanto a vó ainda respirava. Entendeu coisas que nunca tinha entendido. Depois as esqueceu, como costuma acontecer. 

E desse jeito passaram o tempo – a neta, a avó e a morte. Ou a neta, a avó e a vida, na verdade. O dia e a noite acabou lhes vencendo. A avó, seus cabelos poucos, suas pernas belas, suas músicas desconhecidas, sua solidão fiada da ausência dos outros, se foram para sempre. A neta também morreu seu bocadinho ali,  o que, no entanto, lhe trouxe uma colherada a mais de vida - mas isso é outra história.

O telefone tocando sem parar a acordou de repente. Não se assustou; sentia uma paz e uma calma sem igual. Seus braços estavam estranhamente vermelhos de sol (ou amarelos?). E perfumados. Era sua mãe. Telefonara para dizer que o médico tinha dito que sua avó provavelmente não passaria daquele dia.

 

 

 

 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Febre de dengue

Case-se, Mari.
Eis o meu plano: você constrói sua piscina e chama seu povo para a inauguração, rigorosamente só seu povo, esse pingado de pinçados.
É uma surpresa. Será nosso segredo, do jeito que você gosta.
Deixe que as margaridas eu compro.
Prepare dois vestidos brancos, um pra você, outro do tamanho de uma dançarina de ainda quatro anos - mas esse último muito rodado, sem falta.
O noivo não pode esquecer que são, então, duas alianças. Que ache um anel bem delicado, e disso nem precisa ser avisado, porque a esta altura não é possível que já não tenha entendido que você é grande por acidente e levanta pesos por engano; todo o em volta e o de dentro, especialmente, é de porcelana miúda. Praticamente uma gueixa mineira.
[A bem da verdade eu imaginava seu vestido amarelo. Mas pensei depois que o amarelo é meu. Pra dizer então com o centro gravitacional das margaridas, combinei com o sol presença certa. Preocupa não.]
Case-se Mariana. Por inteiro, Mari. Comer pelas beiradas pode até ser de ordem nas Gerais, mas casar pelas beiradas é um desperdício triste. Imperdoável economia de vida.
Tem coisa que tem que terminar. E tem término que significa simplesmente começar.
Abrace de uma vez os diabos desse homem que ele já abraçou os seus há muito tempo. Fácil não é, mas, ao mesmo tempo, como explicar, é o oposto do complexo. Relacionar-se com alguma sabedoria depois do segundo degrau só assim mesmo: diabos abraçados, quem sabe até de porre em algum carnaval.
A dúvida tem que ter seu prazo de validade. Dividir o quarto assim com ela pra sempre não dá; uma das duas passa a cair do beliche. Prefiro que seja ela pra nunca mais te ver de olho roxo de manhã e gaveta de mesa cheia sabe-se lá de quê.
Ok, você pode usar seus óculos, servir só vinho rosé e pegar a taça dos outros. Chame para o cortejo seu amado criancil. Elas pisarão em folhas de outono e carregarão nas mãos pequenos lagartos, que não deixarão de te comemorar. Acho que vejo alguns tucanos também.
Case-se assim que possível. Case-se com o possível. Todo mundo faz assim. Quer dizer, na verdade nunca perguntei pra todo mundo, mas não carece. Tem quem saiba disso de antemão. Tem quem descobre depois e rache irrecuperavelmente. Tem quem faça seus combinados e siga. Não seja dos que viram pedra e engessam tudo à morte. Seu amor por pedras não pode chegar a tanto.
Case-se de Mariana.
A gente arranca de madrugada aquele maldito cadeado da loja de noivas em Buenos Aires. Mau presságio também deve ter no nosso desejo o seu limite.
Diga sim, esse sim que, no final das contas, é sempre muito mais pra gente do que pra qualquer outra pessoa. Eu faço coro contigo.
Simmmmmmmmmmmmmmmmmm!