terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Há tempos risos e conversas ricas


Faz dezenove anos. Eu estava num cantinho de uma sala de aula, quando ali apareceu uma menina que perguntou meu nome.  Eu ri. Ela riu bem mais. Dali até aqui quantos e tantos ricos risos.
Faz também dezenove anos. Na mesma sala, percebi outra menina. Chegou tão certa, com uns olhinhos antigos de "vamos lá". E lá fomos nós, eu sem entender, ela também sem compreender, pra dentro de um ônibus até os cantinhos da minha terra mineira.  Conversou comigo como se não fosse a primeira vez. E de lá pra cá foram as mais ricas conversas. 
Nos últimos dias dos dezenove anos, as duas meninas  foram comigo pra um cantinho de mar. E sabe cá o que foi mais lindo lá? A menina que sempre riu muito,  conseguiu também rir dos choros altos dos meus filhos. Riu com ternura rica. A menina de entrada certa olhou nos olhos da minha pequena filha e a chamou para o seu “vamos lá”. Foram juntas, reconhecidas na vida que é sábia em frustrar os desejos dos que desejam demais. 

O mar do meu corpo que vez e outra vez fica revolto quando as chuvas são fortes, com tantos risos e conversas ricas não tem como não se acalmar.

 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Terapia intensiva

Passei essa semana inteira com minha avó de 92 anos numa UTI. Ela quebrou o fêmur e fez uma cirurgia. Por causa do alzheimer, precisou de acompanhamento da família 24 horas por dia. Isso em plena UTI. Eu, minha mãe e irmã nos revezamos. Ficar lá horas e horas foi intenso, para dizer o mínimo.
Minha cabeça fervia enquanto meu coração quebrava de quinze em quinze minutos.
Numa UTI sente-se a borda da vida encostando na nuca da gente. Parecido com as salas de parto, mas do outro lado do espelho e recheado do afeto contrário: na maternidade tudo é potencial, sonho e futuro; numa UTI, com o amanhã escorregando pelos dedos, a agonia do presente e, especialmente, a realidade do passado é o que bate à porta.
Eu olhava pros lados, olhava pra minha avó, e uma coisa não me saía da cabeça: viveram? Viveram bem? Isto é, conseguiram realisticamente dar uma boa versão ao que tiveram à disposição?
Ou mais suportaram do que viveram? Ou mais pelearam do que aproveitaram? Ou mais reclamaram do que reconheceram? Ou mais se retraíram do que amaram?
Não quero soar boba. Sei que, de regra, a vida é limitada e faltante - e pra muitos mais limitada e mais faltante ainda. Falo só do que é possível fazer das vidas ordinárias que recebemos, da forma como dá pra conduzir a coisa, desde lá da maternidade até... até talvez uma UTI.
Porque, mesmo pros mais esmagados, o espectro é amplo. Dentro de toda vida, acredito, as opções vidão e vidinha, e todas as milhões intermediárias, estão lá à disposição do sujeito. Há as escolhas. Sem entrar no mérito da existência ou não de verdadeira liberdade pra elas, com o quê sei que arrisco seriamente a validade do que é dito, acho que dá pra assumir que. sim, temos escolhas (uns mais, outros menos, a depender de mil coisas). Escolhas fundamentais, escolhas banais; são aos montes todos os dias. Escolho seguir numa discussão, escolho seguir num casamento, escolho não procurar nunca mais um amigo, escolho continuar a dirigir falando no celular, escolho não dar um tempo na bebida, escolho uma escola pra um filho, escolho trabalhar menos. E é comum se escolher mal muitas e muitas vezes seguidas. Não por não se desejar as coisas boas, mas por as querer só de uma determinada forma, na base da sorte, da trombada, da porrada ou do jeitinho. Por se querer mais estar certo (e assim ser reconhecido) do que qualquer outra coisa. Por se querer mais aplauso do que gozo, aquele íntimo e de verdade. Sofrimento, solidão, doença, confusão, deterioração: vidinha. E a conta vem - mesmo que só lá, numa sala de UTI, onde apenas o resto de vida dá pra ser entubado e mecanicamente ventilado, o passado não.
Coincidentemente (?), estando por ali, li o texto que rodou o FB esses dias de um psicólogo respondendo a um rapaz de 28 anos que está prestes a morrer e lhe escreve perguntando se ele teria alguma coisa para dizer a alguém em sua situação (https://www.facebook.com/#!/notes/frederico-mattos/o-que-falar-para-algu%C3%A9m-que-est%C3%A1-prestes-%C3%A0-morrer-nota-de-falecimento-de-r/10150339656827677).
"Morra o mais vivo que puder" foi o principal "conselho" do psicólogo.
Gostei muito. Me remeteu a uma morte apaziguada, com os bons sentimentos tendo vencido a parada. Mas fiquei pensando que o oposto "viva o mais morto que puder" é também uma dica e tanto, principalmente pra gente, esse pessoal como eu e você, que no fundo ainda duvida que vai mesmo um dia morrer.
"Viva o mais morto que puder", isto é, viva tendo sempre à mão da imaginação uma janelinha de UTI pra trepar e espiar a si próprio, lá dentro, pertinho do fim da sua curva do tempo.Olhe a cena. O que é mesmo que você gostaria de ter pra dizer pra essa mulher curiosa que disfarçadamente te olha e em silêncio te pergunta se você conseguiu viver bem?
Respire. Não tenha pressa. Escolha bem essa resposta. E escolha todos os dias.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Paula que te quero Paula Távora

Eu cresci te enxergando como a maior mulher do mundo. Gostava de observar seus quebra-cabeças, a sua letra tão bem desenhada nos cadernos de estudo de medicina, a sua voz rouca e o seu destemor de ganhar o mundo. Cresci querendo ser um pouquinho como você. Um dia já grande ouvi você falar que eu, quando criança, era tímida e quieta. Eu me lembro de gostar de ficar no meu mundinho. Isso era lá verdade. Hoje, talvez seja mais tímida não, mas digamos que mora em mim uma simpática à mineira. Sou muito para poucos e bem pouco para todos. Mas coisa curiosa é que junto de você a timidez toma meio que conta e volto a ser a menina de cantos, feita pra admirar. Tem gente que foi feitinha mesmo pra ser admirada. Porque até na dor, na mais lancinante dor, que é a de não poder sonhar com o futuro, você continua pra mim a maior mulher do mundo, nos seus quebra-cabeças de tantas outras peças, na sua letra que desenha agora... vacinas, na sua voz rouca, que hoje nina minha filha, no seu destemor de fazer sua segunda filha ganhar o mundo. E com você por perto eu tenho “Bençãos”.
Pra você, poesia do meu poeta das horas em que a minha alma pede toques surreais de vida, Manoel de Barros.
As bênçãos
Não tenho a anotomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me namoram mais de perto.
Fico enamorado.
(Mari)

domingo, 13 de janeiro de 2013

Meus olhos caídos


Os cantos dos meus olhos têm um cair qualquer que sempre me deixou com um ar digamos sonolento, de quem acabou de acordar.  No meu pai há a mesma expressão,  mas que sempre me evocou um charme manso. Em mim, batia um incômodo, como se precisasse de olhos mais despertos,  quiça mais atentos.  Foi preciso meu filho nascer pra que meus "olhos caídos" deixassem de ser um simples par de herança. São os olhos do meu pai, que sonham com sua arquitetura particular e brincam como se não tivessem envelhecido. São os meus olhos, que viajam com letras e amores possíveis . São os olhos do meu filho, que me transmitem a lassidão que me acalma. São olhos que atravessam três gerações, que transitam entre consciente e inconsciente, entre sonos sonhados, que se encontram em cantos de fartos detalhes. 

"Quem me dera voar bem alto,
  no estalo do salto.
  Volta e meia o que vejo é o brilho do asfalto.
  Volto assim a correr
  de caso com o ato,
  quando enxergo de fato
  a alma do mato."

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Por uma vida de cantinhos


Em 2012, me mudei para uma casa. Não é uma casa grande, mas eu, cria de apartamento a vida toda, nunca morei em tanto espaço. Foi uma época também muito sem dinheiro, consequência dessa mudança e dos outros vendavais do ano. E eu, que tenho fixação em arrumar, reformar, decorar e redecorar casa, fiquei fazendo força para ter a paciência que o desencontro “casa nova/falta de dinheiro” pede.
Meio angustiada, acabei descobrindo uma maneira de dar azo ao meu tesão e, ao mesmo tempo, não arruinar de vez com as finanças.
Cantinhos.
Sem grana para grandes mudanças ou transformações gerais, tive a ideia de ir mexendo na  casa aos pouquinhos, ou melhor, “aos cantinhos”. Delimitava espaços bem pequenos, às vezes só um lado de uma parede ou o conjunto de gavetas de um determinado armário, e me dedicava longamente àquilo, como se não houvesse nada mais na casa. Limpava-o milimetricamente (e olha que uma boa limpeza é às vezes tudo o que o negócio pede e a gente nem desconfiava...); arrumava de um jeito diferente, colocava uma flor, um quadrinho; passava uma demão de tinta de outra cor. Matutava, enfim, dias sobre o que eu poderia fazer para aquele cantinho ali - só ele e esquecendo o resto da casa - ficar mais alto astral, mais funcional, mais aconchegante (tenho tara por aconchego) ou só mais bonito mesmo.
E não é que descobri uma força danada nessa besteira de cantinhos? Porque se eu pensasse na casa toda ou mesmo na sala ou na cozinha inteira, e em tudo que aparentemente eu queria mudar, perdia as forças automaticamente, fosse por causa do dinheiro que não tinha, fosse por causa da energia que também não sobrou pra muita coisa em 2012. Agora, se eu pensasse só naquele pedacinho da casa, me empolgava na hora achando que seria moleza, era só eu colocar a caixola pra funcionar e as mãos pra trabalhar.
Já mexi em vários cantinhos. Cantinho de ler na rede. A última poltrona do sofá da sala de TV, onde arrumei uma bandejinha perfeita e providencial pra se tomar um vinho ali. Cantinho das crianças brincarem com tinta. Cantinho no quintal que dá pra colocar uma canga e ficar deitada, cara a cara com o céu.  Um cantinho azul na sala porque azul é o que há. Um cantinho da cristaleira com todas as xícaras brancas penduradas, dando um ar de casa de roça que adoro. Enfim, venho me ocupando com a minha cachacinha, não gastando tanto, e, como não, de cantinho em cantinho, a casa vem ficando um brinco.
E o que isso tudo tem a ver com esse blog e o primeiro post que ouso?
Cantinho. Esse blog é... um novo cantinho. Agora não da casa, mas da minha vida. Porque, num dia desses em que mexia em algum traço da minha casa, me ocorreu que essa forma de fazer podia ser, na verdade, uma maneira de viver. Viver de cantinhos, esquecendo de propósito do “quadro total”, se é que há um. O trabalho te realiza? Você é feliz no casamento? É uma boa ter três filhos? Aliás, você é feliz? Ai, sei lá! Sei que acabei de voltar de uma tarde com minha mãe e os dois menores e foi um passeio ótimo. Sei que hoje meu marido me deu, do nada, uma capa nova de celular, exatamente uma que um dia eu apontei pra ele numa vitrine. Sei que acabei de receber um email muito legal de uma amiga minha de mais de vinte anos, que vive há anos em outro país, e o que ela escreveu me encheu de ternura. Sei que minha filha de cinco anos voltou há pouco da colônia de férias e me deu com tanta empolgação, mas tanta empolgação um passarinho de biscuit que fez que foi impossível não achar, ali naquele segundo, que a vida é linda e fácil.
Cantinhos.
Arrisco dizer que é tudo o que de real a gente tem e que o geralzão das coisas, além de nos dar uma canseira danada só de pensar, além de nos desgastar ao extremo na tentativa de ser controlado e definido, na verdade é algo intangível, que foge às mãos, mesmo as de mais destreza, e às caixolas, mesmo as mais perspicazes.
Pois aqui começa mais um desses cantinhos pra mim - pequenos, possíveis e deliciosos. E eu não poderia estar melhor acompanhada: pela Mari - sem dúvida, um dos melhores cantinhos da minha vida!
Que seja divertido, emocionante e “acrescentante” para nós e... talvez (tomara) pra você!