quinta-feira, 30 de maio de 2013

Esqueçam os monitores


Há algumas semanas, tive a (digamos pitoresca) experiência de estar na Globo. Sou uma das coordenadoras de um projeto do tribunal, a Central Judicial do Idoso, e a Fátima Bernardes convidou a gente pro seu programa.

Das tantas novidades para mim naquela manhã, uma saiu martelando na minha cabeça. E ainda está. Dentro do estúdio, eles têm duas televisões suspensas grandes onde fica passando o que está sendo transmitindo para o telespectador. A tentação de você ficar o tempo todo checando o que está aparecendo (na verdade, checando se você está aparecendo, como está aparecendo etc.) é enorme. Só que se as pessoas que estão participando do programa ficarem olhando pras TVs mela tudo, porque o que vai aparecer é um monte de gente com o olhar perdido para cima - terrível. Então, a produção fica lá repetindo de cinco em cinco minutos o mantra: "esqueçam os monitores, por favor, esqueçam os monitores".

Bobeira? Sim. Ou não, a partir da analogia que me ocorreu.

Quantas vezes as pessoas estão nas situações (na festinha, no trabalho, nos grupos, na balada, até em família, até na intimidade) e, ao invés de estarem ali de verdade, estão é olhando pros monitores, isto é, preocupados ao extremo em saber como estão se saindo, qual a impressão estão causando, qual está sendo a provável visão externa sobre elas? Muitas, irritantemente muitas. E todo o resto se sente só cenário - e não pessoa, e não encontro, e não vida - pra essa pessoa.

Escrevi isso agora e percebi que me coloquei na posição de quem sofre o narcisismo dos outros e não de quem também fica comumente na fissura pela própria imagem. Soa melhor, né. Mas claro que não é bem assim; também me pego muitas vezes ausente "do programa", absorta na loucura pelos monitores. Lembrando-me dessas situações, sabe o que vejo nítido, além de a mim e ao meu buraco? O quanto perco o que está acontecendo ao redor quando não sou capaz de abrir a portinhola de mim mesma e estar para o outro, estar para o que estiver rolando, quando não paro de me olhar, não me despreocupo comigo. No mito de Narciso também foi desse jeito: de tão hipnotizado que ele estava pela sua própria imagem que se refletia no lago, perdeu a vida, definhando-se até morrer na margem (estaria certo também “à margem”...).

Ao contrário, quando penso nas pessoas que conheço que mais têm essa capacidade de se ignorarem, no bom sentido, que não ligam tanto para a sua imagem, para o que o outro vai devolver a ela sobre ela mesma, percebo o quanto são vivas. No meu monitor, elas acabam aparecendo em cores vibrantes e lindas, que coisa! Estão vivas e cheias de uma energia bonita. Talvez menos simpáticas, talvez menos agradáveis, talvez sem tanto verniz, talvez mais sinceras do que eu gostaria, mas mais vivas, sem dúvida nenhuma. Parece que, paradoxalmente, quem mais não se preocupa em encantar é, no mais das vezes, os mais encantadores dos seres. Mas não sabem. E nem querem saber.

Adolescente, um dia escutando uma dessas explicações "orgânico-morfológicas" para as coisas do tipo “a gente deve falar menos e escutar mais, por isso dois ouvidos e uma boca”, lembro de ter pensado algo que tem a ver com isso. Pensei no quão artefato, no sentido de não existir espontaneamente na natureza, é qualquer coisa que reflita nossa imagem (uma máquina de tirar foto, uma filmadora, até um espelho). Tirando uma superfície plana de água (que mesmo assim dificilmente reflete com nitidez), parece que o mundo foi feito para a gente não se ver. Agora, para ver os outros, para ver tudo ao redor, a gente foi muito bem aparelhado: dois olhos incríveis, com foco automático, capaz de captar zilhões de cores, de nuances etc. Não teria aí uma explicaçãozinha para o quanto contrário às leis do natural e da vida é ficar tão apaixonado pelo próprio “si mesmo”? Acho que sim. Eu, que na época era católica de carteirinha, lembro de ter fechado esse raciocínio pensando: é, talvez fosse sobre isso que Ele estava falando quando disse que o grande barato da gente por aqui deveria ser servir ao outro e não a si próprio.

De qualquer jeito, o certo é que grudar os olhos nesses monitores nos desfocam demais do essencial, nos atrasam muito pro nosso encontro com o real, nos roubam do agora, esse único que há, nos desenergizam. Vai que a Fátima passa a bola pra você e você não pega de tão abestado que estava lá, olhando pra cima, distraído fixado nos monitores. Não é pela imagem estranha que vai aparecer de você; mas pela chance daquela história ali. Você sabe, o programa é ao vivo, não tem ensaio, nem repeteco. Você perdeu. Tão preocupado em ganhar e perdeu. A vida tem dessas charadas.   

terça-feira, 28 de maio de 2013

Trocas


Com vocês dois que eu não me contente com o pão.

Que a verdade nunca vá para os cantos de um chão;

que seja dita, ensinando-lhes que dor não é em vão,

para vocês trocarem falta por um aperto de mão.

Um afago vem então.

Mas só isso, por favor, não.

Se não vier às pequenas bocas a voz do coração,

que eu a sinta como um clarão,

para trocar falta por emoção.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Sorrisos


Sorrisos fartos,

por todos os cantos estampados.

Ficaram discretos.

Tímidos vivem em esquinas ensimesmados.

Sorrisos internos.

Nos sonhos pretendem-se eternos.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O tamanho de um pai


Na última segunda, adornei meu cabelo com uma flor branca e coloquei o pé na estrada em companhia do meu marido pra fazer uma coisa que amo desde bem novinha: ir a um show de rock. Desta vez não era um show qualquer. Era o show do Paul McCartney, aquele moçinho, hoje senhor, de feições delicadas. Feições que provavelmente inspiraram a flor branca que escolhi para o meu cabelo.

O show foi mesmo delicado. Fez o que eu acho que a música deve fazer: reverberar. Era noite, mas se podia sentir luz indo e vindo das pessoas. Nessa onda “amorosa”, um amigo tocou no meu ombro, ao som de “Hey Jude”, e pediu que eu tirasse uma foto dele com o pai. Meu amigo estava visivelmente emocionado e no canto dos meus ouvidos disse: “tudo o que eu sei sobre música aprendi com esse cara, que faz cinquenta anos que ama Beatles”. Foi impossível não ficar com os olhos inundados de lágrimas. Na hora pensei no meu velho pai, que, desde bem pequena, eu via os olhos marejar ao ouvir o Chico Buarque cantar Construção. Não é à toa que a frase “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” vez ou outra vem à minha cabeça, às vezes com, às vezes sem nenhuma conexão com o que estou fazendo ou sentindo. O que faz sentido é que a frase “morreu na contramão atrapalhando o trafego” casa o com o discurso “vermelhinho” do meu pai, que mesmo não conseguindo me fazer petista de carteirinha cravou em mim aquele olhar que procura algum tipo de conforto para os que nunca tiveram conforto algum e podem morrer na “contramão atrapalhando o tráfego”. Chuto aqui que o pai do meu amigo, ao ouvir os Beatles pronunciarem “take a sad song and make it better”, passou tanta emoção ao pequeno filho, que fez dele um homem que hoje transforma pedra em caminho.

Meu pai, o pai do meu amigo são aqueles tipos de pais que ocuparam um tamanho bom na vida dos filhos. Porque há pais que fazem sombra tão gigante nos filhos, que os deixam mesmo a viver em sombras. Lembro-me agora de Kafka dizendo em Carta ao pai, que seu pai ocupou quase todo o mapa do mundo e que lhe couberam alguns poucos espaços, nos quais ele mal soube existir. E os pais pequenos paradoxalmente produzem tão pouca sombra, que deixam seus filhos com a eterna sensação de estarem à deriva. Assim, pai de tamanho bom é que aquele que deita no mapa junto com o filho. As sombras que se veem são as de um no outro. Fácil, então, seguirem de mãos dadas a um show de “rock in roll” pra sentir lá no fundo do coração a música cantada pelo Paul McCartney, que desconfio também ter tido um pai de bom tamanho, nem tão grande, nem tão pequeno.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Escute aqui.


Tenho uma amiga que foi morar no Rio e sempre diz que carioca não sabe ouvir. Segundo ela, mal conseguem disfarçar a impaciência pra que você termine logo a sua fala e eles possam começar a deles. E costumam responder ao que você diz com uma outra história. Deles, é claro. Sabe aquela coisa de você contar algo seu e ao invés de encontrar alguém atento ao que falou, ouvir um "ah, mas comigo foi a mesma coisa. Ela... E também... Ele... E aí..." E aí que o que você disse já era, o foco já é outro e o momento se perdeu. Isso quando você não foi tesourado antes de chegar no fim, que é o mais provável.

Sempre concordo com ela, meio dolorida, meio envergonhada. Dolorida porque também sinto falta - e muita! - de bons ouvintes ao redor. É muito comum me flagrar falando pra quem só está esperando eu parar para chegar a sua vez de falar; pra quem não consegue conectar, sair da órbita de si mesmo. Tão corriqueiro quanto cruel, cruzes. E envergonhada porque, eu bem que tento, mas também me vejo muitas vezes não escutando direito quem fala comigo - ou pelo menos não escutando como acho que deveria.

Só discordo com minha amiga sobre os cariocas. Não são eles que não sabem ouvir; é o mundo inteiro. E a impressão que tenho é que está cada vez pior. Quanto mais barulhenta a vida fica, quanto mais apressada a vida fica, e nesses quesitos tudo só tem se abismado mais, maior a legião de surdos-falantes por aí. É bem deprê.

E por que essa compulsão por falar (que não permite ouvir)?

Pra existir, pra se sentir existindo – arrisco dizer.

Porque, verdade seja dita, a gente morre de medo de não existir, no sentido de não fazer muita diferença, não ser assim tão importante pra ninguém – muitos de forma crônica.

Ironicamente, os que mais precisam falar, e por isso menos escutam, possivelmente têm uma história de não escuta por detrás.

Imagino que em seus primeiros passos esse ser não foi ouvido ou, o que importa, não se sentiu ouvido. Quem estava ali do lado não deu muita bola para o que penso ser a mais primordial de todas as tarefas de um pai e de uma mãe (e aqui coloque qualquer outra figura estruturante de uma pessoa): colar o ouvido no peito daquela criança, daquele adolescente e... ouvir. Só ouvir. Não correr pra colocar palavras em sua boca; abrir espaço, ter paciência, para que as próprias palavras brotem, essas que lhe são únicas, de mais ninguém. E que quando brotem, encontrem do outro lado uma terrinha boa de respeito e uma mão jardineira de cuidados, pra não murcharem, mas crescerem, bonitas, frondosas. Que na sombra dessa árvore de raiz firme essa pessoa possa se abrigar para sempre.

Na falta da própria fala (lenta e bem recebida por um outro de olhos arregalados), pode ser que fique a impressão (nuns mais, noutros menos) de simplesmente não se existir.

E agora o morto-vivo, ou melhor, o vivo-morto, vai falar na marra e, como consequência, que se dane você que queria que ele te escutasse. Vira uma questão de vida ou morte – sem exagero.

Aliás, tenho sempre a impressão de se poder "medir" o grau de sanidade interna de uma pessoa pelo tanto que ela é capaz de ouvir. Quem já sabe que "existe" e está mais ou menos em paz com isso, não sente mais tanta necessidade de estar sempre abrindo a boca em jorros (e amordaçando o outro, consequentemente), na tentativa (com reload eterno) de (se) provar vivendo e sendo valioso pros outros.

Na época da faculdade eu fui voluntária do CVV (Centro de Valorização da Vida) por um ano. Era um trabalho voluntário sério. Antes de entrar, fazíamos um curso de dez sábados inteiros. A missão do CVV é a prevenção do suicídio atendendo ligações de telefone e então eu fui pro curso curiosa pra saber que palavras mágicas eles tinham na manga para nos ensinar que fossem capazes de demover um suicida de sua intenção.

A maioria das pessoas, claro, não ligava à beira de um suicídio, se bem que houvesse algumas. Mas ligavam, invariavelmente, para falar de solidão (ninguém o escuta mais?), tristeza (ninguém nunca te escutou direito?), desorientação (você não consegue escutar ninguém?).  

O que se fala para alguém que está pensando em se matar? Ou praquela que não fala em morte, mas te conta de um estado de tristeza insolúvel, de uma solidão irremediável? Não se fala, se ouve. Foram dez sábados batendo nesta tecla. Não havia nada para se dizer. Nenhum apelo, nenhum consolo. Tudo o que o CVV ensina para seus voluntários é: OUÇA. E devolva com falas que incentivem a pessoa a falar mais.

Depois de todos esses anos, o que ficou pra mim do CVV foi, além do impressionante tamanho do buraco das pessoas, o quanto “só ouvir” pode ser curativo. Milagroso, eu diria.

Hoje em dia, quando me pego em situações em que eu simplesmente não sei o que dizer (e eu sempre quero ter alguma coisa pra dizer, infelizmente), às vezes eu consigo me lembrar de não dizer nada; de apenas “comparecer com o meu ser” (essa é uma frase fantástica da minha analista), tentando dar passagem para a dor daquela pessoa ou para a situação delicada que ela veio contar, ou mesmo pra qualquer banalidade que quis dividir – se gosto dela, não existe presente melhor que me fazer disponível de verdade.

Várias vezes eu estou no meu trabalho e tenho que entrar numa audiência sem dominar direito o assunto (não é que juiz seja displicente, não, minha gente, é que como substituta é comum ser chamada de uma hora pra outra pra cobrir os outros nos lugares mais diferentes). Penso no que tenho pra fazer ali se sei tão pouco. Antes de começar a me sentir uma farsa, respondo-me: vou ouvir; vou dar atenção. Só isso. Juiz antes de ser lei deveria ser paz e paz costuma começar por aí. Se eu conseguir ouví-los bem, se eu conseguir decifrar o problema como se estivesse o explicando para um leigo, sem atropelar ninguém só pra reforçar para os presentes que continuo sendo a "autoridade", não deve ser tão difícil assim achar o caminho do bom senso. Dá certo, muito mais do que quando começo a falar de direito.

Aqui em casa também colho exemplos. Uma criança vem com uma demanda e eu não sei me posicionar. Deixo? Não deixo? Aqui faço vista grossa? Aqui pego no pé? Antes de agir, escutar - repito pra mim mesma. E a gente descobre frases enormes e pensamentos até complexos vindos de um menininho de menos de dois anos que ainda não fala mais que cinco palavrinhas. Vem disso me alinhar tanto com ele ali naquele momento que o que eu achava que cobrava de mim uma posição já fica em segundo plano. Somos amigos e entre amigos não há tanto dessas coisas.

Ouvir de verdade. Doar-se na escuta, no acolhimento, no esquecimento de si por um tempo para que o outro possa ter vez e voz. Parece pouco, mas é uma baita coisa. Tudo quanto é telefone dá sinal de ocupado hoje em dia; como é raro, meu Deus, que alguém atenda, diga somente oi, e te dê, generosamente, o tempo e a atenção dela. Em muitos casos, só o CVV é que vai responder a isso mesmo. A gente vai deixar?