quinta-feira, 2 de maio de 2013

Escute aqui.


Tenho uma amiga que foi morar no Rio e sempre diz que carioca não sabe ouvir. Segundo ela, mal conseguem disfarçar a impaciência pra que você termine logo a sua fala e eles possam começar a deles. E costumam responder ao que você diz com uma outra história. Deles, é claro. Sabe aquela coisa de você contar algo seu e ao invés de encontrar alguém atento ao que falou, ouvir um "ah, mas comigo foi a mesma coisa. Ela... E também... Ele... E aí..." E aí que o que você disse já era, o foco já é outro e o momento se perdeu. Isso quando você não foi tesourado antes de chegar no fim, que é o mais provável.

Sempre concordo com ela, meio dolorida, meio envergonhada. Dolorida porque também sinto falta - e muita! - de bons ouvintes ao redor. É muito comum me flagrar falando pra quem só está esperando eu parar para chegar a sua vez de falar; pra quem não consegue conectar, sair da órbita de si mesmo. Tão corriqueiro quanto cruel, cruzes. E envergonhada porque, eu bem que tento, mas também me vejo muitas vezes não escutando direito quem fala comigo - ou pelo menos não escutando como acho que deveria.

Só discordo com minha amiga sobre os cariocas. Não são eles que não sabem ouvir; é o mundo inteiro. E a impressão que tenho é que está cada vez pior. Quanto mais barulhenta a vida fica, quanto mais apressada a vida fica, e nesses quesitos tudo só tem se abismado mais, maior a legião de surdos-falantes por aí. É bem deprê.

E por que essa compulsão por falar (que não permite ouvir)?

Pra existir, pra se sentir existindo – arrisco dizer.

Porque, verdade seja dita, a gente morre de medo de não existir, no sentido de não fazer muita diferença, não ser assim tão importante pra ninguém – muitos de forma crônica.

Ironicamente, os que mais precisam falar, e por isso menos escutam, possivelmente têm uma história de não escuta por detrás.

Imagino que em seus primeiros passos esse ser não foi ouvido ou, o que importa, não se sentiu ouvido. Quem estava ali do lado não deu muita bola para o que penso ser a mais primordial de todas as tarefas de um pai e de uma mãe (e aqui coloque qualquer outra figura estruturante de uma pessoa): colar o ouvido no peito daquela criança, daquele adolescente e... ouvir. Só ouvir. Não correr pra colocar palavras em sua boca; abrir espaço, ter paciência, para que as próprias palavras brotem, essas que lhe são únicas, de mais ninguém. E que quando brotem, encontrem do outro lado uma terrinha boa de respeito e uma mão jardineira de cuidados, pra não murcharem, mas crescerem, bonitas, frondosas. Que na sombra dessa árvore de raiz firme essa pessoa possa se abrigar para sempre.

Na falta da própria fala (lenta e bem recebida por um outro de olhos arregalados), pode ser que fique a impressão (nuns mais, noutros menos) de simplesmente não se existir.

E agora o morto-vivo, ou melhor, o vivo-morto, vai falar na marra e, como consequência, que se dane você que queria que ele te escutasse. Vira uma questão de vida ou morte – sem exagero.

Aliás, tenho sempre a impressão de se poder "medir" o grau de sanidade interna de uma pessoa pelo tanto que ela é capaz de ouvir. Quem já sabe que "existe" e está mais ou menos em paz com isso, não sente mais tanta necessidade de estar sempre abrindo a boca em jorros (e amordaçando o outro, consequentemente), na tentativa (com reload eterno) de (se) provar vivendo e sendo valioso pros outros.

Na época da faculdade eu fui voluntária do CVV (Centro de Valorização da Vida) por um ano. Era um trabalho voluntário sério. Antes de entrar, fazíamos um curso de dez sábados inteiros. A missão do CVV é a prevenção do suicídio atendendo ligações de telefone e então eu fui pro curso curiosa pra saber que palavras mágicas eles tinham na manga para nos ensinar que fossem capazes de demover um suicida de sua intenção.

A maioria das pessoas, claro, não ligava à beira de um suicídio, se bem que houvesse algumas. Mas ligavam, invariavelmente, para falar de solidão (ninguém o escuta mais?), tristeza (ninguém nunca te escutou direito?), desorientação (você não consegue escutar ninguém?).  

O que se fala para alguém que está pensando em se matar? Ou praquela que não fala em morte, mas te conta de um estado de tristeza insolúvel, de uma solidão irremediável? Não se fala, se ouve. Foram dez sábados batendo nesta tecla. Não havia nada para se dizer. Nenhum apelo, nenhum consolo. Tudo o que o CVV ensina para seus voluntários é: OUÇA. E devolva com falas que incentivem a pessoa a falar mais.

Depois de todos esses anos, o que ficou pra mim do CVV foi, além do impressionante tamanho do buraco das pessoas, o quanto “só ouvir” pode ser curativo. Milagroso, eu diria.

Hoje em dia, quando me pego em situações em que eu simplesmente não sei o que dizer (e eu sempre quero ter alguma coisa pra dizer, infelizmente), às vezes eu consigo me lembrar de não dizer nada; de apenas “comparecer com o meu ser” (essa é uma frase fantástica da minha analista), tentando dar passagem para a dor daquela pessoa ou para a situação delicada que ela veio contar, ou mesmo pra qualquer banalidade que quis dividir – se gosto dela, não existe presente melhor que me fazer disponível de verdade.

Várias vezes eu estou no meu trabalho e tenho que entrar numa audiência sem dominar direito o assunto (não é que juiz seja displicente, não, minha gente, é que como substituta é comum ser chamada de uma hora pra outra pra cobrir os outros nos lugares mais diferentes). Penso no que tenho pra fazer ali se sei tão pouco. Antes de começar a me sentir uma farsa, respondo-me: vou ouvir; vou dar atenção. Só isso. Juiz antes de ser lei deveria ser paz e paz costuma começar por aí. Se eu conseguir ouví-los bem, se eu conseguir decifrar o problema como se estivesse o explicando para um leigo, sem atropelar ninguém só pra reforçar para os presentes que continuo sendo a "autoridade", não deve ser tão difícil assim achar o caminho do bom senso. Dá certo, muito mais do que quando começo a falar de direito.

Aqui em casa também colho exemplos. Uma criança vem com uma demanda e eu não sei me posicionar. Deixo? Não deixo? Aqui faço vista grossa? Aqui pego no pé? Antes de agir, escutar - repito pra mim mesma. E a gente descobre frases enormes e pensamentos até complexos vindos de um menininho de menos de dois anos que ainda não fala mais que cinco palavrinhas. Vem disso me alinhar tanto com ele ali naquele momento que o que eu achava que cobrava de mim uma posição já fica em segundo plano. Somos amigos e entre amigos não há tanto dessas coisas.

Ouvir de verdade. Doar-se na escuta, no acolhimento, no esquecimento de si por um tempo para que o outro possa ter vez e voz. Parece pouco, mas é uma baita coisa. Tudo quanto é telefone dá sinal de ocupado hoje em dia; como é raro, meu Deus, que alguém atenda, diga somente oi, e te dê, generosamente, o tempo e a atenção dela. Em muitos casos, só o CVV é que vai responder a isso mesmo. A gente vai deixar?

5 comentários:

  1. Texto seu, que sinto tão meu por ser nossa a jornada de exercitar a escuta, pra que o nosso existir possa ser mais nosso, sem depender do Outro, des-sendo um pouquinho mais pra desejar sem precisar de reconhecimento. Ler isso me faz querer estar ainda mais de mãos dadas com você na vida, me faz pensar que só você poderá ser minha parceira pra viagem à India. O texto me dá a certeza que minha filha te adora porque você soube escutá-la quando ninguém soube, nem eu.

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    1. Mari amada, não sei se a gente vai conseguir chegar na Índia, mas, quando vejo vc escrevendo coisas assim, percebo que, em nossas parcerias, já estamos a mundos daqui, talvez nesse lugar do real, onde as palavras desaparecem.

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  2. Lindo! Lindíííííííssimo!!! Que saudade de te escutar mais...
    Bjs. Obrigada pela presença no meu aniversário.
    Catarina

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  3. Da onde vc tira que eu perderia seu aniversario? Vc nos subestima....(;
    Te amo, cat.

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  4. Querida Gabriela...eu realmente tenho saudades de ti!

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