quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

feiras

Terça-feira. Recosto meus ombros nos braços magros dele. Na tela da TV à nossa frente mais um episódio de A usurpadora. O som das falas traduzidas dos personagens se mistura ao roçar das longas unhas dele nos meus cabelos. Pergunto por qual razão ele tem unhas tão compridas e ele responde que é porque as pinta nos finais de semana - no geral, de vermelho. Confiro tomando a mão direita dele, procurando pelos restos. Na próxima semana vai vir de unhas pintadas, fala. A novela segue. Choramos. Ele me conta do último namorado. Eu escuto. 

Sexta-feira. Amo estudar na sala de visita, espaço interditado às confusões familiares. Território onde brincam as frestas de luz, que têm ali passe garantido porque não deixam bagunça. Ele diz que já posso entrar, não vai contar pra minha mãe. Tem nas mãos uma enceradeira que deixa no canto para ir na direção de uma samambaia que pende do cachepô sobre o aparador. Ele ajeita a planta, balança os quadris com movimentos suaves e canta: “Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto. Se você disser tudo que quiser então eu escuto. Faaala. Lá, lá, lá, lá. Se eu não entender, não vou responder. Então, eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar. Então, eu escuto. Faaaaaaaaaaaala. Lá. Lá. Lá. Falaaaaa.” Eu pergunto de quem é a música. Ele diz: “só sei quem a canta. É o meu Ney”. 

Segunda-feira. Ele chega e as unhas estão mesmos cobertas de vermelho. No meio da tarde, entro na área de serviço. Dança pra mim. Coloca uma calça brilhante justa com uma camisa de seda aberta. Abre os braços e os meneia já em voo. É a primeira vez que o vejo cantar “Pavão Misterioso”. 

Outras-feiras. Rimos, tagarelando. Nos prantos, silêncios. Ele canta chorando. Eu escuto. Ele canta sorrindo. Eu falo para dentro. 

Acabaram-se as feiras, com ele, que se foi. Alguém me diz que “os meninos malvados, viados” se vão para sempre. 

Sem ele, vivi muitas feiras, trezentas, centenas, milhares. feiras sem calendário. Ainda o vejo cantar, no meio de uma tarde de alguma quinta. Canções cantadas em forma de escuta. Não é do Ney. Conta a história de uma menina de doze anos que ainda iria ultrapassar os horizontes do morro em que morava. Raramente pintou as unhas de vermelho, pois preferia azul do luar. Mas toda sexta escutou, como quem comunga religiosamente aos domingos, a canção “Fala”. Assim, encontravam-se, voando. No carnaval, junto com a filha, se fantasiou de pavão misterioso. Na derradeira terça-feira, soube que já não havia meninos a balançar os quadris e cantar sorrindo. Como a não suportar mais, fugiu no seu balão vermelho, horizonte além e morro acima, onde fazia pleno seu azul luar.

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