quinta-feira, 18 de abril de 2013

Do amor sem vácuo


Depois de falar de casamento, queria falar de amor. Amor de casamento. É mais do mesmo, só que não.

Depois que virei mãe, tenho uma teoria difícil de sustentar a esse respeito. Eu sei que pode soar como um baita engano. E talvez seja mesmo. Mas, fazer o quê, quanto mais tempo de casada passa, quanto mais tempo sendo mãe passa, mais faz sentido pra mim: tenho a íntima convicção de que o amor entre um casal, para que seja desses que realmente levam alto, fundo e longe, tem que ser parecido com o amor que temos a tendência a sentir pelos filhos.

Também acho: à primeira vista, parece horrível. Mas deixa eu tentar explicar um pouco.

Não é virar mãe do marido ou pai da esposa - isso seria uma troca de papel mortal. Mas é amar esse/essa aí do travesseiro ao lado com as forças e as feições do amor por um filho.

Continuo me explicando.

Quando me aconteceu de ser mãe, muitas outras coisas vieram na carona. A maior parte é bem comum e muito se comenta sobre elas. Mas pouco se fala do que pra mim foi o mais revolucionário de tudo: o modelo de amor que ganhei.

E amor tem modelo? Queria poder dizer que não, mas, na verdade, acho que é bom que tenha. Vê se não é: se a gente deixa o amor acontecer só do jeito que lhe toca, sem depurá-lo, sem desembaraçar-lhe os cabelos e abrir-lhe as vistas, sem moldá-lo um tanto quanto (ou bastante, a depender), muita besteira pode vir daí. Porque nem sempre, talvez quase nunca, a gente sabe amar bonito, isto é, de um jeito saudável pra quem ama e pra quem é amado. De um jeito que não atarraxe o outro, mas o promova. Que  não se intimide, mas também não invada. Que não estrangule, mas solte, dê corda. Que mantenha os olhos mais na pessoa real do que na imaginária que vive na nossa cabeça. Que, que, que... é uma lista grande.

Quando me vi mãe, me vi amando da forma mais intensa e mais inteira que já amara. E também mais tolerante, mais esforçada, mais abdicada de mim mesma, mais mansa e mais um monte de coisas bacanas. Sem negar todas as muitas ambivalências do amor de mãe, fato é que eu não costumava conseguir antes voos desse nível com quem já amava. Foi inédito, o que não é muita novidade; muita gente fala de algo parecido. O que passa a ser singular nessa minha história é o que acho que entendi a partir dessa epifania toda.

A gente ama tanto um filho porque em relação a ele há a ilusão da não separação ou, inventando para melhor dizer, de uma não separatividade. Arcaicamente, consciente ou inconscientemente, o filho não é um outro, ele é a gente mesmo. Aliás, bem aí esse amor acaba perdendo muito do seu glamour: o amor pelo filho é o amor por nós mesmos. Continuamos ao redor do umbigo, só tendo mudado de margem.

Mas o meu ponto aqui não é o ego todo envolvido na raiz do amor mãe/pai-filho, porém o fato de que a força espantosa desse amor brota da premissa interna ancestral de não se sentir separado do outro, mas se sentir um com o outro.

Mutatis mutandis, a fraqueza (ou a feiúra) nas relações – eu acho que dá pra pensar assim também – vem da sensação de separação do outro. Em maior ou menor grau, a gente sempre se sente um tanto quanto separado dos outros e é nesse vácuo imaginário-psicológico entre mim e o outro que vagueiam todos os grilos relacionais, dos que mais incomodam aos totalmente inofensivos e corriqueiros. O outro que tenho que conquistar (às vezes todo dia); o outro que tem que me provar um monte de coisa e eu pra ele; o outro em quem confio-desconfiando; o outro que eu sei que vai pensar nele primeiro, antes de se importar comigo; o outro que eu acho que está me ignorando; o outro que eu acho que é melhor do que eu; o outro para quem eu queria ser importante; o outro de quem eu imagino coisas e que imagina coisas sobre mim; o outro que é realmente o meu inferno, você acertou na mosca, Sartre.

Mas não estamos separados (aliás, nem os filhos são tão pouco separados da gente, mas isso já é outra história...). Isso sim, é um enorme equívoco, pouco reparado, e daí raramente reparável - reservado a poucos que de fato parecem estar em suas últimas encarnações do tanto que conseguem exalar amor fresco, fácil, genuíno e colorido por onde quer que passem.  Tendo nossa condição humana sempre por debaixo dos pés, estamos todos no mesmo barco. Todos. Mesmo. Barco. E aí, tomando o que sentimos pelos filhos como molde, de quem temos a ilusão de sermos tão a mesma coisa, é possível se abrir para uma conexão em outro patamar com quem quer que seja, especialmente com esse/a aí do seu lado, que aterrisou na sua vida por razões tão insondáveis quanto os seus filhos: seu marido, sua esposa, seu companheiro, sua parceira, sem vácuo.

A partir do coração de mãe que ganhei, faço esse exercício sempre: e se fosse meu filho? Eu iria amar. Fosse quem fosse; independente dos seus méritos, das suas derrotas, das suas pernas tortas. Ele poderia agir como um idiota, eu iria amar. Não estou falando em ser cega, mas em amar e acolher. Ele iria me fazer passar vergonha, mas eu iria amar, amar e acolher. Ele iria ser detestável em vários momentos, mas eu iria amar, destestá-lo sim, também, mas amar ao mesmo tempo. Ele iria se perder, soltar minha mão, correr pra longe, se engaiolar; eu iria procurar, eu iria agarrar, eu iria esperar, eu cerraria grades. Pelo meu filho; pelo meu marido. Um amor sem tantas condições, sem tantos caprichos. Um amor que é sentimento, é paixão, é desejo, mas que também dá um jeito de se combinar com uma espécie de trato, compromisso, missão.

Eu sei que é muito difícil compactuar com algo assim, que até da admiração pelo outro, em vários momentos, pode prescindir. E que, numa cultura em que tudo é baseado na sedução, da pipoca de microondas ao design da sobrancelha, uma coisa dessas é blasfêmia das mais horrendas.

Mas, sinceramente, é só num amor com essa envergadura que de uns tempos pra cá venho acreditando e, só para lembrar, parece que São Paulo também:

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se não tivesse amor, seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente. Ainda que tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência; ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse amor, nada disso me adiantaria. O amor é paciente, o amor é prestativo; não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade.Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência também esaparecerá. Pois o nosso conhecimento é limitado; limitada é também a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança. Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. A maior delas, porém, é o amor.






 

 

2 comentários:

  1. Perfeito como sempre Gabi, por isso sou su fã!
    Bjo Thici.

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  2. Ai, ai... Belo exercício este Gabi, um exercício espiritual inaciano, eu diria, rsrs
    Bjs!

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