Terça-feira. Recosto meus ombros nos braços magros dele. Na tela da TV à nossa
frente mais um episódio de A usurpadora. O som das falas traduzidas dos personagens
se mistura ao roçar das longas unhas dele nos meus cabelos. Pergunto por qual razão ele
tem unhas tão compridas e ele responde que é porque as pinta nos finais de semana - no
geral, de vermelho. Confiro tomando a mão direita dele, procurando pelos restos. Na
próxima semana vai vir de unhas pintadas, fala. A novela segue. Choramos. Ele me conta
do último namorado. Eu escuto.
Sexta-feira. Amo estudar na sala de visita, espaço interditado às confusões
familiares. Território onde brincam as frestas de luz, que têm ali passe garantido porque
não deixam bagunça. Ele diz que já posso entrar, não vai contar pra minha mãe. Tem nas
mãos uma enceradeira que deixa no canto para ir na direção de uma samambaia que
pende do cachepô sobre o aparador. Ele ajeita a planta, balança os quadris com
movimentos suaves e canta: “Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto. Se você disser
tudo que quiser então eu escuto. Faaala. Lá, lá, lá, lá. Se eu não entender, não vou responder.
Então, eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar. Então, eu escuto. Faaaaaaaaaaaala. Lá. Lá. Lá.
Falaaaaa.” Eu pergunto de quem é a música. Ele diz: “só sei quem a canta. É o meu Ney”.
Segunda-feira. Ele chega e as unhas estão mesmos cobertas de vermelho. No meio
da tarde, entro na área de serviço. Dança pra mim. Coloca uma calça brilhante justa com
uma camisa de seda aberta. Abre os braços e os meneia já em voo. É a primeira vez que
o vejo cantar “Pavão Misterioso”.
Outras-feiras. Rimos, tagarelando. Nos prantos, silêncios. Ele canta chorando. Eu
escuto. Ele canta sorrindo. Eu falo para dentro.
Acabaram-se as feiras, com ele, que se foi. Alguém me diz que “os meninos malvados,
viados” se vão para sempre.
Sem ele, vivi muitas feiras, trezentas, centenas, milhares. feiras sem calendário. Ainda o vejo cantar, no meio de uma tarde de alguma quinta. Canções cantadas em
forma de escuta. Não é do Ney. Conta a história de uma menina de doze anos que ainda
iria ultrapassar os horizontes do morro em que morava. Raramente pintou as unhas de
vermelho, pois preferia azul do luar. Mas toda sexta escutou, como quem comunga
religiosamente aos domingos, a canção “Fala”. Assim, encontravam-se, voando. No
carnaval, junto com a filha, se fantasiou de pavão misterioso. Na derradeira terça-feira,
soube que já não havia meninos a balançar os quadris e cantar sorrindo. Como a não
suportar mais, fugiu no seu balão vermelho, horizonte além e morro acima, onde fazia
pleno seu azul luar.