Lembro de achar engraçada a confusão. Tia Marinalva, jardim 2, 1980: a primeira coisa que tínhamos que fazer todos os dias era responder "- presente!" após ouvir a professora chamar o nome. Um por um, o clima era de uma certa insistência e disciplina. Alguém não atendia, e ela ficava lá, pronunciando o nome cada vez mais alto e mais silabado até que viesse da pessoinha um audível "- presente!". Eu era atenta a esse tipo de coisa (a tantas outras não tenho a menor dúvida que hoje receberia um indefectível rótulo de TDAH...), não deixava passar minha vez; ao contrário, ficava tensa, caprichando pra falar alto e direitinho. Só não entendia porque dizer "presente" quando ouvisse meu nome, pois presente pra mim era presente, e só. Não sabia o outro significado da palavra e achava então meio maluco falar de presente em voz alta pra turma inteira só porque a professora chamou meu nome.
Confesso não estar achando muito engraçada a confusão, não. Mas vamos lá. Vara criminal, Planaltina, 2013: lembrei da tia Marinalva. Sentindo um frio grande na barriga pelo desafio profissional que começou, tracei como estratégia uma só: eu vou estar presente. E vai ter que ser, sim, com uma certa insistência e disciplina. Pois agora, tal qual naquela salinha de jardim de infância, não vou deixar passar. Estão chamando o meu nome e eu quero caprichar - vou responder com o melhor grito de "- presente!" que conseguir.
"Comparecer com o seu ser" foi uma das frases da minha analista de mais efeito para mim nesses anos. Nem me lembro o contexto, mas hoje me serve pra quase tudo. Penso, aliás, que se tivesse um segredo na vida, um só, seria esse: compareça, esteja presente, nada pode dar muito errado se você estiver entregue. Quer dizer, que dá errado dá, mas quando é na nossa presença (ou com a nossa presença), a topada parece não arrebentar tanto com a gente quanto arrebenta quando acontece na nossa ausência ou, pior, pela nossa ausência. Estar nas situações por inteiro, estar com as pessoas nos detalhes, estar no quer que esteja acontecendo ao redor com o que sou, com o que não sou, com o que está dando pra ser por enquanto. Eu: presente e de presente.
Aliás, hoje, pra mim, nada mais coerente do que presente de estar presente ser a mesmíssima palavra de presente, regalo. Tem ou não tem tudo a ver chamar uma presença de presente? É um outro enfoque sobre o mesmo assunto que também tem me ocorrido muito: há coisa melhor do que alguém que se faz presente pra gente? Existe melhor presente? Não tem. É simplesmente irresistível uma pessoa realmente presente. E como nos faz bem. Fico pensando no tanto que tentamos acertar com os outros e com as coisas (ai Planaltina...) mediante mil e um malabarismos quando bastaria, e basta, estar presente. Comparecer com o seu ser e nem um centímetro a mais (melhor dizendo, a menos).
Nessa época em que presentes comumente se tornam uma obsessão, pensar nisso talvez gire a chave pra um lado mais interessante: quem sabe, de presente, me fazer presente? Sei não, mas o que deve ter de gente por aí chamando o nosso nome, uma, duas, vinte vezes, já silabou, já tentou falar devagar, sussurrando, agora anda gritando... E o que tem vindo de resposta? Tô mais praquela criança tímida do canto da sala que a professora nem escuta? Ou o distraído que, mergulhado na sua viagem, se aliena? Sou o que se irrita com a insistência do chamado ou, por essas inversões que rolam, faço que não quero ouvir só pra ouvir mais?
Bem que no fim da aula tia Marinalva sempre dava um deverzinho de casa mesmo...
"Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo." (Eliane Brum)
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
domingo, 10 de novembro de 2013
O dia em que eu te encontrei
Certo dia você roia as unhas e no
seu olhar a imensidão do mar era o que cabia. Eu sequer existia.
Numa foto, alguém captou uma travessia.
Pra mim você ali não existia.
Era verão e eu lia. Você com palavras
cruzadas ria. O mar não mais te envolvia. E assim eu pra você existia.
Silêncios abissais eu não
compreendia.
Desencontros fatais: desses eu
entendia.
Mas com rédeas fugidias, a chuva
me trazia
você que só para o mar existia.
Na multidão você sumia e eu ouvia:
“Levante as mãos para o céu
E agradeça se um dia encontrar
Um amor, um lugar pra sonhar
Pra que a dor possa sempre
mostrar algo de bom.
Eu ainda lembro o dia em que eu
te encontrei.”
http://www.youtube.com/watch?v=MCObYSB2Mfk
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Desencontros íntimos
O destino era um bem antigo alento.
Na ventania se misturaram o intrépido e o alento, o antigo e
o momento.
Tentaram na vastidão se entender.
Suaram e se esticaram.
Mas sem cola não havia mais como compreender.
Cansados e amargurados,
só lhes coube o encontro inventado
do velho entardecer.
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