Um telefonema da mãe bem cedo a avisou que a avó morreria
naquele dia. No dia seguinte no máximo - teria dito o médico.
Sentada na mesa da cozinha, o sol batia de leve na
cadeira mais longe da janela, o que ela sabia significar que o céu se abriria dali
a pouco daquele jeito escandaloso que só em Brasília.
Correu para vê-la, demorando muito mais que o normal para
percorrer os dez quilômetros que a separavam da casa da mãe, onde estavam a avó
e sua morte; morte que, quando chegasse (às 10?, meio-dia?, três da tarde?, só
na madrugada?), as separaria definitivamente e sem volta, fosse ela mais rápido
ou mais devagar.
O quarto era o último do corredor. Estava certa: fazia um
lindo dia de sol e o apartamento parecia suspenso, brincalhão, em seus raios.
Fora o choro baixo da mãe, ninguém diria que naquele dia e naquela casa alguém
perderia a vida.
Mas perdeu.
Só que antes ela abriu a porta e encarou a avó. Carcomida
pela vida, pela doença e agora pela morte, nunca a tinha percebido tão miúda.
De olhos fechados, alguma antessala já lhe tinha roubado o canal com o mundo
havia dias.
Sentou-se junto à cama. Estavam as sós: ela, a avó, seu
fiapo de vida e a morte iminente. O que fazer? O que se faz numa hora dessas?
Notou as janelas e cortinas fechadas; a luzinha fraca do
abajur a (des)colorir o quarto de cinza-gelo.
Estaria a avó com calor? Estaria com frio? Estaria com
dor? Estaria aonde?
Lembrou-se do nascimento da filha. Embora vinda da outra
margem, só então havia visto de tão perto alguém cruzando essa mesma estranha passagem,
vida-morte, morte-vida. E também tinha tido anúncio e véspera. Uma gravidez
inteira já percorrida e a criança não nascia. Todo dia acordava e todo dia lhe
alucinava o pensamento de que poderia terminar aquele dia mãe. Nada para ela
dava conta daquele enquanto.
Pois terminaria o dia sem avó. E também nada parecia dar
conta daquele agora. Se deixasse, a aflição a arrastaria agonizando com avó até
o final. Mas a lembrança da gravidez inspirou-lhe outro rumo. Quando não sabia
mais o que fazer para aguentar a espera pela bebê, enfeitava os dias, com cantos, passeios, cheiros
e histórias. Esmerava-se nisso: se ela chegasse, quando chegasse, sua filha
encontraria o melhor entorno possível.
Teve a ideia então de, por que não?, enfeitar o máximo a
morte da avó. Seria calma. Seria amarela. Seria solar. Seria fresca. Até
alegre, até feliz, muito mais para agradecida do que contrariada. Havia motivo
para isso, embora houvesse também tanto motivo contrário. Escolhas – vive-se delas
até morrendo.
Decidida por isso, abriu as cortinas todas, da casa
inteira. O sol invadiu o quarto da avó e estava no ponto, nem quente, nem frio,
só carinhoso. O vento deu uma lambida nos cabelinhos ralos da avó e arrepiou as
pernas ainda inacreditavelmente bonitas para a idade. Simplesmente não dava para
acreditar que aquelas pernas voltariam a ser terra em tão pouco tempo. Simplesmente
não dava para acreditar que sua avó, ainda ali, não estaria mais, em alguns horas,
alguns minutos, talvez só o tempo de terminar o pensamento. Simplesmente não dava
para acreditar em nada do que estava acontecendo. A morte é mesmo um absurdo.
Queria colocar música, mas não se lembrava de que músicas
a avó gostava, sentindo um golpe duro no peito bem aí ao imaginar que talvez
não tivesse passado o tempo necessário com avó para descobrir-lhe as músicas. Aliás,
talvez não tivessem feito um monte de coisas uma com a outra. E agora já não
dava tempo para mais nada. Não importava: o que tinham sido e talvez
principalmente o que não tinham sido também iria para debaixo do chão a seguir.
Não. Errada. O que foram existiria enquanto ela existisse. Ok, o que não foram
faria o favor de jogar lá no fundo do mundo mesmo.
E agora? Música de igreja, ótima pedida. Achou no celular
e colocou em boa altura. Colocou todos os santos no criado-mudo. Avisou-lhes
que estavam de plantão.
“Vamos cantar, vó. Vamos falar de alguma besteira. Sim,
besteira, vó, porque só as besteiras estão à altura dos momentos realmente
grandes como esse. Você não conseguindo, deixa comigo: eu canto e falo por
você. E te abraço e te beijo e choro um pouco na sua bochecha (vai desculpando
trair nosso plano de sua morte alegre).”
Enxotou, o dia inteiro, todo o assombro exagerado e o baixo
astral que tocavam a campanhia. Podiam dizer adeus à avó, sim, mas que fossem
leves, por favor. Rezou o terço em voz alta. Três vezes, como a avó tinha lhe
ensinado quando se quer rezar o rosário. Passou na avó seu creme e seu perfume
preferidos, da cabeça aos pés. Pegou os álbuns da casa, olhou as fotos de uma
vida, mostrou a ela e a suas pálpebras cerradas. Comentou tudo de que se
lembrou. Riu, enquanto a vó ainda se ia. Chorou, enquanto a vó ainda respirava.
Entendeu coisas que nunca tinha entendido. Depois as esqueceu, como costuma
acontecer.
E desse jeito passaram o tempo – a neta, a avó e a morte.
Ou a neta, a avó e a vida, na verdade. O dia e a noite acabou lhes vencendo. A
avó, seus cabelos poucos, suas pernas belas, suas músicas desconhecidas, sua
solidão fiada da ausência dos outros, se foram para sempre. A neta também morreu
seu bocadinho ali, o que, no entanto, lhe
trouxe uma colherada a mais de vida - mas isso é outra história.
O telefone tocando sem parar a acordou de repente. Não se
assustou; sentia uma paz e uma calma sem igual. Seus braços estavam
estranhamente vermelhos de sol (ou amarelos?). E perfumados. Era sua mãe.
Telefonara para dizer que o médico tinha dito que sua avó provavelmente não
passaria daquele dia.